Pêndulos e super-luas

Apanhou-me. Vim aqui sentar-me à janela, só por uns minutinhos, prometo. A verdade é que não conseguia mesmo continuar deitado com um luar destes aqui a espreitar-me. Veja ali no alto, a Lua a descobrir-se do algodão das nuvens. Com que força o seu brilho rasga a noite, com que juventude. E tão próxima. É de pasmar, não acha? Parece que vive a duas ruas de distância, como se pudéssemos fazer-nos ao caminho e ir lá ter em cinco minutinhos.

Quando a Lua cheia coincide com o perigeu, o ponto da sua órbita mais próximo da Terra, dá-se este fenómeno. É como que um beijinho que ela nos dá. Assombrosa! A super-Lua ocorrerá três vezes neste ano, esta é apenas a segunda, e eu espero muito sinceramente andar cá para ver a terceira. Mas um dia de cada vez, é o que lhe digo. Gostava muito de ter o seu optimismo, Eva, mas as coisas são assim, e o tempo é manhoso.

Olhe, a primeira super-Lua, por exemplo. Deu-se antes desta macacada toda do vírus me apanhar, e parece que foi há uma eternidade, mas na verdade foi há apenas um mês. O tempo comprime-se e dilata-se, como se para ele fôssemos meros espectadores sem qualquer voto na matéria. É ele e a natureza. Eles devem ser um casal, da maneira com que congeminam as suas leis. Espanto-me como estou continuamente às suas mercês, e ainda assim, me vou aguentando. Após uma vida a gizar na ardósia as verdades imutáveis do universo, eis que ele finalmente gizou uma para mim. E sabe a que conclusão cheguei, Eva? Aos seus olhos, não sou nada senão uma pequenina massa.

*

— Vou-lhe pedir para não fazer esforços, senhor Manuel — ouvi dizer uma voz  — Tem níveis de oxigénio muito baixos — disse outra, ou seria a mesma? — Vamos ter de o entubar.

Quando chegamos à minha idade sofremos muito com as inércias do corpo. A urgência repentina com que viajava dentro do hospital pusera-me num estado de inquietação maior. Tornara-me campo de batalha contra um inimigo desconhecido, e agora era projectado por criaturas brancas na imensidão dos corredores, vítima dos meus próprios pulmões, que me afogavam, e por mais que tossisse aquele líquido pastoso e pesado, ele continuava a pesar-me e a asfixiar-me.

— Consegue ouvir-nos, senhor Manuel? Está numa situação muito, muito delicada. Devia ter pedido ajuda mais cedo, mas agora está connosco. Está em boas mãos — disse uma das branquidões humanas, pausadamente, como que para uma criança — Vamos induzir-lhe o coma. Vai dormir durante uns dias enquanto recupera dos seus pulmões. Consegue perceber-me?

Acenei. O coração fugia-me, sôfrego.

— Gostaria de contactar algum familiar?

Olhei a criatura, procurando-lhe os olhos, e fui dar por eles debaixo do nevoeiro e do suor das máscaras. Sob os pulsares terríveis do medo soltei um não, que não era preciso. E era verdade. No que toca a gentes e famílias, estou só.

Adormeci como quem se evapora, já com os músculos desligados das vontades. De repente era meio máquina, caído para mundos de outrem onde o dia me escorregava dos dedos e as memórias com ele. Se me perguntar, enfermeira Eva, no que sonhei nesses dias, não lhe sei dizer, mas suspeito, conhecendo-me, que sonhei com a minha amiga Lua, sempre minha companheira, e em como brincara por aquelas vizinhanças em imaginações perdidas.

*

Não sei quando o bicho me deu ares da sua graça. Mas repare que não teria feito nada de maneira diferente. Comidas e coisas para a casa trazia-mas o merceeiro à porta, e à farmácia ia eu, entre pouquíssimos recados. Se eu me fechava, para além disso? Não. O que seria feito do meu cão, pergunto-lhe? Como não trocar a casa por cinco minutos de rua com o Nico?

Por mais que diga que ouço os conselhos da Eva e dos seus colegas, para um cão não há quintais na Terra que valham um chichi em rota. Essa é uma verdade universal, que uma organização de saúde minimamente organizada nunca refutará.

Não me perdoaria se perdesse uma oportunidade de o levar em passeio, uma vez que é para isso que ele vive, e eu, sendo sincero, vivo para o que ele vive. Se não for o meu alfa, é o meu beta, ou todo o meu alfabeto. Ninhos de homem não são ninhos de cães. Ninhos de homem são cápsulas que os levam de missão em missão.

E cão que se preze é zeloso dos pormenores. Sabem tudo, até as horas. Dez da noite, dizia-me ele com os olhos, vamos lá que se faz tarde. Nomeei-o engenheiro de bordo, e que bem que ele se dá nessa função. Ao passo que eu me armo em comandante e mando para o ar algaraviadas, o Nico está secretamente atento a toda uma camada de rotinas e subrotinas que me transcende. Confesso-lhe, Eva, que levá-lo em missão é a mais bela das minhas ocupações, e trato-a com o maior dos rigores. 

Ora note. Antes de sair de casa, traço a rota do percurso numa folhinha, tudo direitinho com a data e as horas da suposta descolagem. Onde viramos, onde atravessamos a rua, quanto tempo ficamos em cada canto do passeio, tudo ali bem claro a esferográfica azul sobre a página. Chamemos-lhe o preparativos das actividades extraveiculares. Como se todos os dias à mesma hora nos aventurássemos pelo sistema solar.

— Estás pronto, companheiro?

Eram dez em ponto quando saímos de casa, prontíssimos para a nossa rota mais frequente. Virámos à esquerda para o túnel, mas mal lhe pusemos um pé, avistámos o gato preto num finca-pé, como se dali não fosse sair. Olhou-nos, do alto da sua importância, como se fosse o dono daquelas bandas.

— Vamos lá.

Com isto, o Nico compreendeu que a trajectória tinha sido recalculada, e aquele território seria assinalado a chichi em missão posterior. Tudo OK, vamos em frente para a rota B, disse ele com a desenvoltura das patas e a cauda em balanços periódicos. O nosso sincronismo é tal que eu já nem sei onde acaba ele e começo eu. De tantas vezes simularmos o cenário da rua, sei que estaremos à altura do desafio quando chegar o dia de irmos passear para as ruas vermelhas de Marte.

Findo o túnel, passámos à direita nas árvores, e enveredámos pelo cimento dos passeios. Já deve ter visto uma mão-cheia de praças iguais, Eva. Prédios sem cor, uma desculpa de jardim, a luz amarela de lampiões alternadamente ligados. Notei a mudança dos tempos, e em como o nosso passeio era provido de um silêncio maior, se é que tal coisa existe.

O vaivém de desconhecidos encolhera com o confinamento, mas mantivera-se a natureza morta dos carros estacionados até perder de vista, os mesmos parquímetros ignorados, os mesmos bancos de jardim vazios à sombra das cabeleiras das árvores. Escritórios, cabeleireiros e veterinários de esquina dormiam como sempre.

Contornámos os ecopontos. O meu pequeno satélite com orelhas fazia as suas inspecções sanitárias, ou como gosto de lhes chamar, análises da morfologia e biologia do terreno. Fiz, como sempre, a recolha rigorosa das amostras em saquinhos herméticos próprios para o efeito. Já nos astronautas as secreções eram catalogadas e secas para posterior estudo, sabia? Eu diria que o rigor científico está presente nos cães, apesar de eles não saberem o que é ter pudor dessas coisas, ou a vergonha de ver as suas biologias em plástico. Eu, por outro lado, sei o que é ter vergonha.

*

— Bem-vindo de volta, senhor Manuel.

Lembro-me de rodopiar num sufoco, como que um fundão de praia, e de vir a dar com com o meu corpo em fanicos, e a garganta em pedra. Os olhos queimavam-se de luz. Encontrei por entre as nuvens uma com olhos, fazendo-se homem, que repetidamente se apresentou como Iuri. Era um enfermeiro dos cuidados intensivos, e prometeu que ia tratar de mim. Examinava-me à distância de uma máscara e uma viseira, e tocava-me com luvas em cima de luvas.

Acordar era como que um adormecimento para um terror diferente. Sentia uma prisão interna da garganta, como se um parasita lá estivesse alojado com vista para as cordas vocais. Sentia simultaneamente uma secura dos lábios, dores terríveis nas costas, coisas coladas ao peito, cateteres a sugarem-me do braço e o pescoço, um tubo a entrar-me pelo nariz, e o tubo da boca, sempre o da boca, que se apoderara dos meus pulmões. O Iuri pedia-me que me tranquilizasse. Eu ralado com a tranquilidade! Ele que se tranquilizasse! O que queria era não sofrer aquele empalamento de carnes. Sentia-me fino como uma película, tão fraco que não mexia os braços, e o Iuri com todo aquele optimismo irritante.

— Muito bem! Está a fazer progressos, senhor Manuel.

Finalmente tiveram a delicadeza de me tirar o tubo, o que foi uma nova tortura medieval por si só. Limparam-me, viraram-me, avaliaram-me, acalmaram-me, e após tudo isso, novamente me deixaram, incapaz de falar, incapaz de engolir, deixado ao cuidado das máquinas.

Eu digo-lhe, enfermeira Eva, que apesar de me ter habituado à solidão da velhice, essa pasmar-se-ia com a que senti ali.

A luz solar não me chegava, só a mesma azulice febril e artificial que caía dos tectos. Tentei fazer sentido do emaranhado de tubos e fios mas não consegui. Depois, vi os pingares de água e os pingares de alimentos, os meus e os das outras almas. Tantos pingares. Os meus pulmões recuperavam a autonomia aos poucos, mas eu não queria pensar nisso. Cirandei os olhos pelos preparos da sala, até dar com um monitor na minha diagonal, onde se traçava a luta do meu coração.

Naquele ecrã desenhavam-se os meus sinais vitais, em números garrafais e traços elegantes de píxeis. Ali estava eu resumido, num quadradinho de cristais líquidos, nu para os números e para os gráficos e para as verdades científicas. Toda a minha frágil proposta para me manter neste mundo. Era, sem dúvida, o canal de televisão mais importante da minha vida, e não tardou até se esboroar em lágrimas.

*

O dia que guardo com mais amor da minha adolescência foi a alunagem em 69, quando pousámos um aranhiço de metal na Lua.

Lembro-me da emissão, um fervilhar fraquíssimo a preto e branco onde mal se percebiam as formas. Para mim era inconcebível como o sinal percorria centenas de milhares de quilómetros e vinha cair direitinho às antenas da televisão da dona Rosinha. Não me cabia na cabeça, e acho que nunca me coube. Esse meu fascínio passou para o dia seguinte, para o dia seguinte a esse, o seguinte a esse também. Passaram-se todos estes anos e continuou a acompanhar-me. Tornou-se parte de mim e dos meus ossos e ainda hoje, sempre que olho o firmamento, recordo-me das nossas seis aranhinhas lá plantadas.

Nestas noites mesmo, Eva, em que virar-me na cama é uma empreitada, sonho com a possibilidade de ser o próximo pisar aquele quintal de pedras e pó. Há coisas que nunca desistem de nós. Sonhares de outros tempos, que se misturam com o calor da areia, a maresia da infância, as corridas em direcção às vagas frias onde nos enfiávamos, num mar tudo menos tranquilo. Desses tempos resto eu e a areia, ambos produtos de uma longa erosão.

*

— O mais difícil já passou.

Daí por diante, dizia o Iuri, voltava a frequentar a escola. Teria de reaprender a andar, a engolir e até a falar. Não dou muito uso a falar, mas respirar sozinho é algo que aprecio. Respirar não é mais que regatear tempo aos segundos de cada vez.

Via os meus companheiros de quarto ali de barriga para baixo, como múmias a meio do processo de embalsamamento. Pobres coitados, pensava eu, ainda tinham tanto pela frente, mas eu não estava melhor que eles. Os rituais que acabavam davam lugar a novos, todos eles desafios à nossa capacidade de termos pena de nós. Exames, tonturas, suores frios, banhos de pano, promessas, medos, varrimentos em ecrãs, insuflações e vazamentos, e aquele horroroso urinar às pinguinhas num saco. Se alguém me perguntar a que se resumiu o meu internamento, posso responder: inspirar, expirar, pingar, pingar, numa batalha diária com garras e dentes para ganhar terreno ao futuro.

O relógio da sala faz um processo semelhante mas com menos alarido. Puxa o tempo para si, como quem o iça, com a pureza dos pêndulos simples, e não se queixa. Está neste mundo há mais tempo que eu, imune a quaisquer vírus de gente, com a simples função de bombear tempo para a minha sala de estar. Clique, claque, clique, claque, só precisa de um pouco de corda, clique, claque. O nosso coração, por outro lado, é feiísimo. Não passa de um bife mal passado, sem qualquer elegância, e não cheira a verniz. Quando deixar de funcionar, nunca terá a elegância de um relógio parado.

*

Só nos cruzámos com duas criaturas, já personagens próprias daquela praça. A primeira era um sujeito de bicicleta, que fazia a vistoria de todos os contentores e caixotes de lixo. Tudo o que encontrasse revertia para o cesto da sua bicicleta. Ia e vinha a resmungar sob o seu farto bigode, e, que eu me recorde, nunca nos respondeu às boas noites.

A segunda criatura avistávamos com menor frequência. Debaixo das copas adormecidas das árvores, gerava-se uma sombra na fileira dos carros. Nesse eclipse instalara-se uma carrinha familiar, sujíssima, onde nessa noite vi acender uma chama. O isqueiro revelou uma face que deve ter dado por nós, porque abriu a porta e saiu do carro. Era um rapaz, sim, mas de tal maneira cansado, que parecia ter a minha idade ali metida. Do semblante duro soltou um sorriso.

— Tem um bonito cão. Branquinho.

Equilibrou a voz trémula com a exalação de um fumo, que teve a delicadeza de afastar de nós. Senti um aroma adocicado, inebriante.

— Chama-se Nico.

— Parece ser muito simpático.

— Ele é um bom cão. Não és, Nico? Já o tenho há meia dúzia de anos.

— Posso dar-lhe uma festinha?

Aproximou uma mão do focinho de Nico e este olhou-me, como quem pede permissão.

— Vamos lá, Nico, diz olá ao senhor.

Ele abanou a cauda e começou a cheirar o estranho sujeito, e daí a nada este fazia-lhe festinhas no pescoço e coçava-o sob a coleira. O Nico estava contente, de orelhas baixas, com o desconhecido devidamente cheirado. O rapaz ergueu-se, satisfeito, e mandou mais umas passas, olhando-me tentativamente.

— Não se lembra de mim?

Fiz um esforço. Tão magro, tão duro de rosto.

— Não me recordo. Como se chama?

— Sérgio.

— Tem de me desculpar, tenho muito má memória. Foi meu aluno?

— Não o apanhei como professor, mas deu explicações à minha irmã. Lembro-me de me sentar no seu quintal à espera dela, era eu um miúdo.

Explicações de matemática. Um outro eu, certamente, ao tempo que isto já ia.

— É bem possível, mas é como lhe digo, não me recordo.

— Não tinha um telescópio no quintal, e uma maquete do sistema solar, presa ao tecto? Com lâmpadas pequenas, que ligava com um interruptor?

— Sim, é verdade. Luzes de Natal reaproveitadas.

— Na minha opinião, acho um melhor uso para elas.

Gerou-se um silêncio, e o sorriso dele desapareceu por entre os vales da cara.

— Está a fazer quarentena, professor? Tirando os passeios do cão.

Esta conversa novamente.

— Digamos que já estou de quarentena desde que sou viúvo. Não estou muito preocupado com esse vírus.

— Tenha cuidado, professor. Proteja-se.

— Ele não me encontra. Eu não apanho essas coisas.

— Ainda assim — Sérgio concluiu, como que para si, e depois largou o assunto.

Dei por mim momentaneamente feliz, e isso distraiu-me. Já não me chamavam professor há uma eternidade. Gostei do rapaz por isso mesmo, por essa delicadeza de trato. Não era mais que uma pequena caridade, do tipo que os velhos como eu apreciam.

O Nico chiou para mim, perguntando-me se podíamos ir à nossa vida, mas eu não queria ir já.

— Sabe que hoje é um dia especial?

O rapaz pensou um bocado.

— Deixei de ver o telejornal quando isto tudo começou — disse num tom de desculpa — a minha mãe fica muito inquieta, e depois não consegue dormir.

Apontei para o céu, onde uma Lua engalanada nos contemplava, a aproximadamente 360 milhões de quilómetros de distância. 

— Já alguma vez viu uma super-Lua?

O rapaz puxou uma passa lenta, curioso.

*

A auxiliar foi a correr chamar a enfermeira de serviço, e que alívio foi poder dar com a Eva, àquela hora, no escuro horrível da noite. A culpa invadiu-me o corpo, multiplicou-se, debilitou-me.

— O… Nico. Onde. O… Nico — espremia, rouquíssimo, do fundo dos fundos, entre soluços montanhosos.

— Quem é o Nico, senhor Manuel?

— O meu cão.

— O seu cão. Ora, tenho a certeza de que ele está bem. Com quem ficou?

Limpou-me a face.

— Não… sei.

A sua mão parou, e passou-me pela barba, ponderando ternamente. Eu continuava a dizer-lhe, a si, ao hospital, e ao universo, que não sabia. Não sabia mesmo.

Pedi ao Nico que se sentasse, e ele obedeceu. Lentamente lhe tirei a trela, cocei as orelhas, e por fim abri a porta de casa.

Fitei-o nos olhos, e ele a mim, e permanecemos alguns segundos neste impasse, ambos sérios e compenetrados. No fim de todos os passeios era algo de obrigatório para podermos dar a missão como concluída. Ele aguardava a minha ordem para entrar, porque era a sua missão, e ia ficar ali o tempo que fosse preciso.

Eram momentos apenas, mas que o Nico interpretava como vitais para o cumprimento dos seus objectivos, e eu examinava-o, procurando interpretar os seus olhinhos negros de azeitona.

— Entra lá — soltei, com um quase inaudível sussurro, e ele entrou em casa, contente, o barulho das unhas dele a percorrer os azulejos da cozinha até à marquise. Tinha ido beber água. Eu, pelo meu lado, permaneci junto à porta, feito estátua.

Não sei o que se deu em mim. Naquela noite, por algum motivo inesperado, custou-me pedir ao Nico que aguardasse a minha ordem para entrar em casa. A parte mais bizarra é que já tínhamos feito inúmeras vezes esta troca de olhares antes da ordem, mas nesta em particular o Nico tremera ligeiramente do focinho, em tensão.

Seria uma súplica? Ali, no fim de mais um dia e após um passeio bem sucedido, teria o Nico de implorar para entrar no seu ninho, tão próximo que o podia cheirar? 

— Não sei. Não sei — chorava eu para a Eva.

— Já foi internado há uma semana, senhor Manuel. Ora tente perceber com quem deixou o Nico. Faça um esforço e vai ver que se lembra.

— Não… ninguém. Perdi-o.

— Vamos lá, senhor Manuel. Eu penso consigo.

Fosse o mundo feito de pessoas como a Eva, e seria certamente um lugar melhor. A sua paciência é infinita. Eu sei o quanto as outras vidas de homens e mulheres também sufocavam pelo seu tempo, Eva, pela sua preocupação. Decerto que conhecia famílias fragmentadas pelo vírus. Sustos, perdas irreparáveis, coisas terríveis a acontecerem a pessoas boas. Quem era eu para chorar por um cão? Talvez chorasse menos a perda de uma perna, ou de um braço. Somos todos um conjunto de ignorâncias, sabe, Eva? Gostava de ser mais ignorante nestas questões de perda. Talvez a minha condição com o Nico fosse uma incontornável simbiose. Éramos duas criaturas a quem o tempo juntou pela eliminação das demais. O Nico nunca pediu para ocupar os lugares de vago deixados por outros, e acima de tudo, nunca pediu para ser mais que cão. Eu fi-lo mais que cão.

Aos soluços, contei à Eva dos nossos passeios, e contei-lhe o que pedia ao Nico sempre. 

— Em que pensava ele, Eva? Em que pensava ele?

A Eva passava-me a mão pelos cabelos, pensando comigo.

— Essa é uma boa pergunta, senhor Manuel.

Interrogar-se-ia o Nico se era merecedor? Se teria sido cumpridor do seu ofício de cão, se mereceria ainda o acolhimento da matilha e o seu estatuto? A culpa remexia-me por dentro. Só queria que os meus pés me levassem ou os meus braços me arrastassem pela avenida fora, pelos cimentos e pelos paralelos, todo o caminho até casa.

— Acima de tudo — disse-me a Eva — acho que o Nico queria fazer o seu dono feliz. Os cães são assim, gostam de cumprir ordens.

Pobre Nico, pensei eu, inconsolável. Teriam julgado os seus erros como demasiados, as suas ladradelas como repreensíveis, e as suas escapatórias à lei vigente como inaceitáveis? Teria entrado nalgum incumprimento canino? 

— Tenho a certeza — sussurrou-me a Eva — de que, para ele, sentar e esperar para entrar não era diferente de dar a pata, ou rebolar. Uma instrução.

Depois disso, ficámos em silêncio um bom bocado. Quem era eu para brincar com as liberdades e os medos de uma outra criatura?

*

Inúmeras vezes sonhei que percorria as ruas e vinha deparar-me com um túmulo. Acordava a meio da noite com alarmes a soarem em catadupa, a Eva a correr para mim e a fazer de tudo para que eu me acalmasse. Eu devia ter o olhar de um homem no seu fim, a quem a própria porta ameaçava fechar-se. Quando os sedativos faziam efeito deixava-me cair no espaço e no tempo, como que em órbita de mim próprio.

Reaprendi a engolir e a pôr os pés no chão, como quem renasce aos pouquinhos, antes de me abater neste mesmo cadeirão, amedrontado pela fragilidade do meu esqueleto perante os puxões da terra. O enfermeiro da reabilitação elogiava os meus progressos, e eu danado para eles. Passava os dias a pensar no Nico. Pudera eu passar as mãos novamente pelo seu pêlo, branco e loiro, como uma esfinge de areia.

Tentei reconstruir os últimos dias antes de ser internado, mas nesses desfizera-me em febre, não prestava da cabeça, tossindo-me de fora para dentro, temente pela finitude do Nico mais que pela minha, ciente da deriva a que o condenava. Os obstáculos da corrida eram cada vez mais complicados de saltar. O mundo tornava-se uma algaraviada incompreensível, ruidosa até ao limite das minhas capacidades. Aguentei até à última das últimas para pedir ajuda. Certamente podia aguentar mais um dia, pensava. Com a minha sorte, o vírus entrou-me pela casa adentro, e fez-se hóspede. Terá reparado na desarrumação? Talvez o nosso amigo vírus se tenha reconhecido num jornal dos meus, sob um aro de café.

A unidade intermédia é uma lotaria como todas as outras, entre os que se têm alta e os que regridem para os intensivos. Melhorar não é sinónimo de curar, como eu estava bem ciente, era só uma benesse temporária, um intervalo da luta, incapaz perante os augúrios do vírus. Passei mais dois dias naquela angústia de não saber do Nico.

A nova tarde lavava as ruas lá fora.

— Senhor Manuel.

A Eva dera por mim a apreciar caudais de chuva na janela. O meu olhar encontrou o seu, na branquidão de um anjo.

— Como se sente? Confortável? Posso conversar um pouquinho consigo?

— Claro, Eva. Faça favor.

O Nico gostava de dias de chuva, dizia para mim mesmo. Cão que se preze pisa as poças de água, é um requerimento canino, proveniente dos alfas dos alfas.

— Andei a fazer umas perguntas, senhor Manuel. Confirmei com os meus colegas, e efectivamente, a equipa do INEM encontrou-o sozinho em sua casa. Assim que foi admitido cá, procurámos contactar os seus familiares, ainda que nos dissesse que não os tinha. Primos em segundo grau de Viseu, correcto? Infelizmente, com as nossas medidas de segurança, não podemos permitir visitas, mas senhor Manuel já sabia disso.

— É como vos disse. Eu não tenho família.

A Eva não tocou mais no assunto.

— Na outra noite, o senhor disse-me que vivia com um cão.

— É verdade.

— Ora, a equipa do INEM não deu com nenhum animal na sua casa, mas como o senhor Manuel insistiu e insistiu, hoje eu e o enfermeiro Pedro passámos por sua casa e falámos com o seu senhorio. Ele confirmou-nos que era verdade, que o senhor Manuel efectivamente tinha tido um cão, mas que não o via desde o seu internamento.

— Não falemos mais nisto.

Era a minha súplica. Passei os dedos pelos tubos das narinas, contendo as lágrimas que eu sabia que vinham a caminho. Pensei em como os mundos se desalinham das suas órbitas, quando só restamos nós para os compreender. Como tudo apodrece, até os corpos celestes, como as coisas belas estão em constante declínio.

Lembro-me de se ter levantado, e de se ter posto diante das janelas, cruzando-se com o meu olhar lavado.

— Vamos manter a esperança, senhor Manuel?

Por fim, acenei, procurando o som da chuva, o som da água.

— O seu senhorio abriu-nos a porta de sua casa, mas não nos acompanhou ao seu interior porque não tínhamos forma de o proteger. Vimos a cama pequenina do Nico na cozinha, alguns brinquedos de roer espalhados, e o cheiro a cão por todo o lado. Mas não demos com nenhuma trela, nem comida de cão. O que eu suspeito, senhor Manuel, é que o tenha entregue a alguém quando começou a sentir-se pior. Não chore, senhor Manuel. Vai ver que isto se vai resolver, que vamos dar com ele.

A noite sucedeu-se ao dia, mas algo se passava, porque a Lua andava zangada comigo. Ter-lhe iam chegado novidades da minha quebra? Ela lembrava-se da força do homem que fui em tempos. Como não amar a Lua com o mesmo namoro, tantos anos volvidos, e procurar a sua face apaziguadora em tempos de tumulto?

*

Quando me alojaram neste novo quarto, e pude recuperar alguma privacidade, comecei finalmente a convencer-me de que tinha ultrapassado o pior. Sentia o recobro dos braços, dos engolires, da voz. Apesar de ainda continuar frágil, e com um par de ruínas como pulmões, comecei a dormir melhor e a comer mais.

A minha nova janela dá para a avenida, e tenho uma televisão de gente, na qual pus as notícias a dar. Tenho visto mais gente a passar lá fora, como se as próprias ruas se reabilitassem também. Fizeram-me o teste ao vírus, e deu negativo, depois fizeram outra vez e deu positivo, e foram fazendo até que o resultado se decidiu. Foi um grande alívio quando me pararam de enfiar coisas pelo nariz adentro.

Perdoe-me, Eva. Sempre que a via, a esperança tomava-me de assalto, e logo depois me recriminava por isso. Dava por mim a culpabilizá-la da minha perda do Nico, o que é absolutamente ridículo. Notei que me visitava agora com uma máscara mais leve, sem a parafernália de outrora. Pude ver-lhe a cor dos cabelos, e as linhas do sorriso que lhe escapavam junto ao nariz.

Numa das manhãs luminosas que se seguiram, surgiu-me pelo quarto adentro com a doutora. Falámos da minha recuperação, dos passos a tomar, de como tudo estava a progredir. Quando ela saíu, porém, a Eva deixou-se ficar para trás, o que me pôs o coração logo em alerta.

— Senhor Manuel, há pouco tivemos aqui uma visita muito especial. Veio aqui um rapaz, que perguntou por si.

Na minha expressão não conseguiu encontrar reconhecimento algum, pelo que a Eva continuou.

— Ele pediu desculpa por não ter vindo visitá-lo mais cedo, mas disse-me que teve medo da confusão do hospital. Como, se me permite, fez bem em ter nesta altura…

Pegou no seu telemóvel e, alguns toques depois, virou-o para mim. No ecrã, reconheci a porta de entrada do hospital. Depois, surgiu um rapaz.

— Olá professor! — disse ele.

O corpo começou-me a tremer.

— Lembra-se de mim? O Sérgio? Disseram-me que estava a recuperar bem. Que alívio. Fico muito feliz por si. Por si, e não só, pelo seu Nico também, que está ansioso por voltar para o seu dono, desde o primeiro dia que não me pára de falar de si…

Eu tremia. A Eva ria para si, com a beleza das coisas simples, das felicidades puras, das órbitas, dos pêndulos e das super-Luas.

— Quando estiver fino, professor — continuava o rapaz — dê a sua voltinha à noite, e vai dar connosco, já sabe onde. Lá o esperamos. O Nico não aguenta de saudades. As melhoras, professor. Até breve!

Lembro-me, Eva, de me guardar o telemóvel, e de, no silêncio que nos abraçou, me secar a face de lágrimas.


Queria deixar aqui um grande obrigado à Ana Teresa Silva, que me ajudou com tantos detalhes valiosos para este conto, e à Sara Matos, que também me deu uma ajuda preciosa.

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