Amanhãs de improviso

Foi antes de ontem, e de ontem, e de ontem. O cenário era algo simples, com um divã básico e uma secretária à antiga, junto da qual conferenciavam cadeiras almofadadas de um encarnado vivo. Ao centro, uma janela fosca, ladeada de cortinas pouco insuspeitas, e estantes falsas compunham as paredes ocas.

À boca de cena, uma pianista de colete e laço improvisava músicas misteriosas, e do lado oposto, num cadeirão parcamente iluminado por um miserável candeeiro, encontrava-se uma detective. De cabelo loiro apanhado e pernas cruzadas sob uma gabardine pastel, preenchia as palavras cruzadas num jornal, indiferente às centenas de pessoas que se iam aglutinando ao longo das fileiras da sala de espectáculos.

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Palavras perdidas

Custa-me falar-te. Ao que chegaram os nossos dias. Ter-te numa sombra de quem eras, anos a fio defronte da televisão a um volume ensurdecedor. Queria eu que me ouvisses como te tento ouvir, incapaz que estás de trazer coerência aos sons, perdido e encurralado nas vicissitudes da velhice. Foste de tudo um pouco. Polícia, músico, sapateiro, amolador. Cuidavas de um pomar remoto para o qual percorrias quilómetros de bicicleta. Criámos uma geração de gente que nos quer, ainda que nunca nos baste o seu querer, e fizemos da nossa casa um lugar feliz.

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A língua do pica-pau

Eu e a pedra da casa bebericávamos uma luz quente, de abraço, que se desprendia dos recortes da folhagem. Eram cinco e meia de um dia de setembro. Ouvia pássaros ocultos na azáfama das folhas, ao passo que caía uma sugestão de chuva de nuvens indecisas.

Que chuva? Abrigado sob as cabeleiras do jardim sonolento, nem a sentia. Que tempo estranho. Sobre mim pairava uma tentativa de névoa, e à distância torravam aldeias sob um sol solto. O calor, esse, banhava as terras por igual — um calor corpóreo, como se os meus órgãos se estendessem pela tarde, e o meu sangue encarreirasse pelas covinhas dos canteiros.

Passava das cinco e meia. O piano ecoava pelas ruelas da aldeia alaranjada. Passos tímidos raspavam as escadinhas do sótão. As cadelas dormitavam pelo chão da cozinha, onde pingava loiça na banca. Não se ligaram as luzes da casa, que também precisa de dormir. Agradecem as sombras acolhedoras, os livros poeirentos e a decoração dispersa, e assim, décadas e décadas de tardes quentes dormiam connosco.

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Pequenos papéis

Passa-te pelos olhos uma vaga de tristeza. Cais as mãos do parapeito e descais os olhos sobre os discos, os livros, pequeninos papéis.

Fossem os dias aquele sol que te banha a casa e te abre as cortinas de par em par. Que se refugia entre as tuas pálpebras e os olhos nelas inquilinos, esses teus pedaços de tempo, descidos ao presente após os risos, remetidos ao passado após os choros, e ao futuro após os gemidos.

Querias os dias assim. Perdidos pelas horas, teus, e dos teus livros. Teus e dos teus vestidos, das rendas com que tens casos, mantas com que te encasacas, e de todo o mundo de pessoas que te passam à janela sob os discos, os livros, os pequenos papéis.

És tua e da bicicleta, da tua caixa de correio, das frutas que te adornam os cantos, dos postais que recebes. Frutos dos mimos que plantas pelo mundo.

Quantos de nós te vimos, por uma vez, num vislumbre? A ti e à tua harmonia, num jeito de gente, em amor contigo mesma?

Deixas-te depois verter entre os pensamentos de quem te testemunhou, como tinta que cai entre as páginas. Fazes-te cair, peso morto, e a gravidade que te ampare. Vertes, sangue dos sonhos, qual crime irresoluto dos suspiros, qual aroma indecifrável da memória, poema transparente em páginas caídas. Não há como escapar-te.

Até que te escapas tu a ti. Cais tu nos teus olhos, na vaga de tristeza que os tomou. Cais no nada dos pequeninos dias.

Restarão os discos. Os livros. E a papelada.

Texto ignóbil

Não há forma de fugirmos de nós próprios. Quando da família só restar a nossa carcaça periclitante, suspensa em pontes de batimentos cardíacos num hospital manhoso onde só o BI nos sabe o nome — ainda somos nós que lá estamos. Aquela vaga coleção de células, maioritariamente pele, onde dois globos oculares gastos rodopiam confusos por entre a nébula. Sim — essa é a nossa despedida parva a um universo que se está nas tintas.

Entre a procura de uma gargalhada no próximo e a tentativa de nos afastar dessa cama de hospital, há uma ligação ténue. Houvesse em mim motivos para me desligar desse catéter mental, tinido eterno da mente, fá-lo-ia num ápice. A verdade é que, por mais pessoas que conheça e por mais que me melhore ou tente fazê-lo, cada vez me sinto mais próximo de não conhecer ninguém. A cama sabe-me insistentemente a não minha. Perco apegos — hortas humanas que deixo cair em descuido. Digo-me desprendido de materialismos, e refugio-me nesse pensamento como se de um pequeno forte mental se tratasse. Valorizo artes de fazer e esqueço-me, conscientemente, das de deixar ser. Sou vão e desconsiderado, e não se espante quem me ler a escrever assim. É das coisas mais optimistas que escrevi em anos, fora toda a maluqueira que me sai quando invento personagens.

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