Pedra sobre pedra

As manhãs recebem-nos de braços abertos, o sol primaveril desenhando os muros sobre o alcatrão. Hortas surgem ordeiras e aprumadas, as suas fileiras demarcadas por garrafas de plástico em paus ao alto — lembram-me do quintal de um amigo do meu avô, na Póvoa, na rua das Hortas. Ele delimitava os seus canteiros com garrafas de vinho enterradas na terra, as suas bases ao alto. Desta feita, formava carreiros com rodinhas côncavas de vidro multicor. Nem o meu avô, nem o seu amigo, nem o quintal com as garrafinhas sobreviveram.

Lajes de pedra dormem ao sol, quentes, sob estendais vazios. Gatos vigiam-nos de longe, cães de perto, humanos de passagem. O autocarro da Marques faz inversão de marcha, carregado de estudantes para as escolas de Viseu. Do tractor vermelho, salta um senhor munido de uma enxada, que nos dá o bom dia. Acelera o carro da padaria, abranda o carro da associação. Pássaros deixam-se enganar por corvos postiços e tiras de alumínio ao vento. Ao longe, ouve-se um galo esganiçado — que acorda sempre a uma hora diferente.

Adoro ver o desenho de casas antigas ao nosso redor, extensão natural dos muros, como se deles brotassem. Umas ao abandono, outras ao devoluto mas cuidadosamente emparedadas, com o cimento da porta imitando a textura e o contorno branco das pedras. Escadas por fora ou dentro mantêm-se, mais firmes que muros. A pedra é um contra-senso em si: pode ser a antítese completa da vida orgânica, mas também se transforma uma das provas mais resistentes da sua passagem.

Tiro fotografias às ruínas, às janelas antigas ainda algo envidraçadas, aos seus acessos destruídos. Imagino os sótãos e os quartos que ali existiram. Noto a telha antiga, protectora de gerações. Curiosamente, são estes os artefactos em risco de se perder pela ordem natural das coisas. Basta uma venda, uma autorização de construção, e zás.

As ruínas contam histórias, e quando não, suscitam à imaginação. Recordo-me de praticar mergulho na aldeia submersa de Vilarinho da Furna, inundada em 1971 pelas águas da barragem homónima, e de flutuar pelas suas ruas. Lembro-me perfeitamente do deslumbramento que senti ao visitar a aldeia antiga: de sobrevoar os seus muros, bueiros, tanques, janelas e demarcações de terrenos antigos, tudo em pedra. Ficou-me para sempre o fascínio de pairar por aquelas ruas — onde se andou, onde se conversou, onde se viveu.

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