Díodos emissores de luz

A caixa de ferramentas era uma novidade, mas para aquela ocasião justificava-se. Afinal de contas, eu ia levar coisas importantes para a escola. Os fios eléctricos, as lâmpadas, os motores e as pilhas não podiam ir aos tombos na mochila.

Lembro-me da sensação estranha de ter aquela caixa pesada junto aos pés; lembro-me do sentimento de orgulho do meu colega de carteira, o Hugo, quando afastei os cadernos e comecei a montar junto a ele um circuito eléctrico.

Já o fizera inúmeras vezes, o mais simples dos mais simples: ligar uma pilha a uma pequena lâmpada. Quando uni os terminais, encostando com o indicador o fio descarnado ao polo daquela 9V, ouviu-se o barulho de dezenas de cadeiras a arrastar. Em meu redor, toda uma turma estava de pé, espantada com a lâmpada que subitamente se acendeu.

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Olhares ambarinos

É para mim um acontecimento nobre quando um animal pousa a sua cabeça em algo suave, e me observa.

A gata do Tomé tem 12 anos. Fita-me do outro lado da sala, firme, com a tranquilidade característica de um felino. Já o meu infinitamente adorado cão, com a fisionomia de uma duna poveira, também se entretém perdendo o seu tempo comigo.

Há alturas, quando não me pede comida, mimo, rua, ou coçadelas atrás das orelhas, em que sei que o olhar do Jola é desinteressado. Olha-me, com a maior das simplicidades, o maior dos desinteresses, no mais puro dos gestos. A sua atenção está completamente em mim. Depois disso, o sono fecha-lhe as cortinas, e ei-lo a correr pelos campos dos sonhos.

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Pêndulos e super-luas

Apanhou-me. Vim aqui sentar-me à janela, só por uns minutinhos, prometo. A verdade é que não conseguia mesmo continuar deitado com um luar destes aqui a espreitar-me. Veja ali no alto, a Lua a descobrir-se do algodão das nuvens. Com que força o seu brilho rasga a noite, com que juventude. E tão próxima. É de pasmar, não acha? Parece que vive a duas ruas de distância, como se pudéssemos fazer-nos ao caminho e ir lá ter em cinco minutinhos.

Quando a Lua cheia coincide com o perigeu, o ponto da sua órbita mais próximo da Terra, dá-se este fenómeno. É como que um beijinho que ela nos dá. Assombrosa! A super-Lua ocorrerá três vezes neste ano, esta é apenas a segunda, e eu espero muito sinceramente andar cá para ver a terceira. Mas um dia de cada vez, é o que lhe digo. Gostava muito de ter o seu optimismo, Eva, mas as coisas são assim, e o tempo é manhoso.

Olhe, a primeira super-Lua, por exemplo. Deu-se antes desta macacada toda do vírus me apanhar, e parece que foi há uma eternidade, mas na verdade foi há apenas um mês. O tempo comprime-se e dilata-se, como se para ele fôssemos meros espectadores sem qualquer voto na matéria. É ele e a natureza. Eles devem ser um casal, da maneira com que congeminam as suas leis. Espanto-me como estou continuamente às suas mercês, e ainda assim, me vou aguentando. Após uma vida a gizar na ardósia as verdades imutáveis do universo, eis que ele finalmente gizou uma para mim. E sabe a que conclusão cheguei, Eva? Aos seus olhos, não sou nada senão uma pequenina massa.

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Marcadores de areia

À terceira tentativa frustrada, levantei os olhos do parágrafo. Um grupo de seniores discutia dinheiros e apartamentos que alguém deixou em herança ao sobrinho. Respirei fundo. Por mais que eu ande, por maior que seja a minha peregrinação até ao lugar perfeito para a minha toalha, há sempre um grupo.

Longe de mim querer mal aos sábios de bronze perfeito, ao defunto ou ao seu herdeiro. Plantei a testa na toalha, ouvindo inadvertidamente o evangelho dos bens deixados ao rapaz como lhe fizesse as vezes de advogado ou confessor.

Lembrei-me do filme Tenet, onde duas personagens discutem uma intriga nuclear de fim de mundo em pleno autocarro. Só me apetecia gritar para o ecrã. Há pessoas à vossa volta, seus imbecis. Uma delas deve estar a tentar ler. Ninguém quer saber da vossa vida privada!

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Casa de pedra

Ontem foi um dia de aniversário e a casa encheu-se. É uma casa antiga, eu diria orgulhosa, e ainda assim descortinei-lhe nas faces um certo rubor de excitação. Vi-a surpreender-se com o aparato dos carros, após o qual rapidamente se recompôs, já entretida a identificar os convidados que lhe subiam as escadas de pedra. Acordou os músculos discretamente, como que um mestre de sala acordado ao serviço, obstinadíssimo em dar o melhor de si. Senti a sua felicidade por ter um dia generoso para receber os familiares, numa gratidão imensa de os ter juntos. A uns, conhecera infâncias e adolescências, sermões, educações e namoricos. A outros, dificuldades de viagens, de distâncias, de acidentes e de velhices encurtadas. Aniversários, longas férias de amigos, curtas passagens de visita. Copos de água em longas mesas no quintal, após um curto caminhar a partir da igreja. Primas rebeldes em fugas momentâneas, agora vizinhas de coração. Filmes rolando pelas horas da noite, pianos alegres, pianos tristes. São incontáveis os fragmentos de ligações humanas incrustadas na sua pedra. É através dos olhos dos outros que vejo a casa de novo, agora como a anfitriã que verdadeiramente é, sábia para além do seu olhar terno. Do pó das caves ao do sótão, por entre as fotografias e os livros temporariamente empilhados, ela sabe, mais que eu, para que momentos ligavam estas mesmas portas, para que bigodes, coletes, vestidos, casacos e bibes rodavam estas mesmas esquinas, e que pesadelos de criança serpenteavam ou gargalhavam pelos corredores de noite. Frescura das sombras, abafos de verão e desabafos de inverno, navego pelos corredores da nossa casa como se por eles nadasse, num naufrágio que não naufragou mas resistiu aos tempos, tal é o assombro que me apanha desprevenido, tal é a nostalgia que me chega em segunda mão. Rangem as madeiras à minha passagem, como se comigo falassem, procurando despertar-me do hipnotismo vago do dia-a-dia. Não consigo deixar, por vezes, de me sentir um impostor a seus olhos. Sou uma de muitas personagens que lhe caiu para o colo, e que à data não lhe trouxe nada senão uma parte de si, e uma parte de pouco é nada. Pergunta-me a casa, não alheia aos anos que passam, se entre o verão anterior e este construí algo. Ela, que me conhece até aos ossos, sente o meu silêncio. Tantas vezes fora laboratório de sonhos, palco de experiências, vidro de objectivas de câmaras e telescópios. A minha incapacidade de a descrever contrasta com a sua facilidade de me descrever a mim. A cada verão que cá venho, ouve-me um suspiro. Abraço o cão, deliciosamente alheio à personalidade da nossa casa, e pergunto-me, se um dia lhe serei merecedor de um quarto.