Casa de pedra

Ontem foi um dia de aniversário e a casa encheu-se. É uma casa antiga, eu diria orgulhosa, e ainda assim descortinei-lhe nas faces um certo rubor de excitação. Vi-a surpreender-se com o aparato dos carros, após o qual rapidamente se recompôs, já entretida a identificar os convidados que lhe subiam as escadas de pedra. Acordou os músculos discretamente, como que um mestre de sala acordado ao serviço, obstinadíssimo em dar o melhor de si. Senti a sua felicidade por ter um dia generoso para receber os familiares, numa gratidão imensa de os ter juntos. A uns, conhecera infâncias e adolescências, sermões, educações e namoricos. A outros, dificuldades de viagens, de distâncias, de acidentes e de velhices encurtadas. Aniversários, longas férias de amigos, curtas passagens de visita. Copos de água em longas mesas no quintal, após um curto caminhar a partir da igreja. Primas rebeldes em fugas momentâneas, agora vizinhas de coração. Filmes rolando pelas horas da noite, pianos alegres, pianos tristes. São incontáveis os fragmentos de ligações humanas incrustadas na sua pedra. É através dos olhos dos outros que vejo a casa de novo, agora como a anfitriã que verdadeiramente é, sábia para além do seu olhar terno. Do pó das caves ao do sótão, por entre as fotografias e os livros temporariamente empilhados, ela sabe, mais que eu, para que momentos ligavam estas mesmas portas, para que bigodes, coletes, vestidos, casacos e bibes rodavam estas mesmas esquinas, e que pesadelos de criança serpenteavam ou gargalhavam pelos corredores de noite. Frescura das sombras, abafos de verão e desabafos de inverno, navego pelos corredores da nossa casa como se por eles nadasse, num naufrágio que não naufragou mas resistiu aos tempos, tal é o assombro que me apanha desprevenido, tal é a nostalgia que me chega em segunda mão. Rangem as madeiras à minha passagem, como se comigo falassem, procurando despertar-me do hipnotismo vago do dia-a-dia. Não consigo deixar, por vezes, de me sentir um impostor a seus olhos. Sou uma de muitas personagens que lhe caiu para o colo, e que à data não lhe trouxe nada senão uma parte de si, e uma parte de pouco é nada. Pergunta-me a casa, não alheia aos anos que passam, se entre o verão anterior e este construí algo. Ela, que me conhece até aos ossos, sente o meu silêncio. Tantas vezes fora laboratório de sonhos, palco de experiências, vidro de objectivas de câmaras e telescópios. A minha incapacidade de a descrever contrasta com a sua facilidade de me descrever a mim. A cada verão que cá venho, ouve-me um suspiro. Abraço o cão, deliciosamente alheio à personalidade da nossa casa, e pergunto-me, se um dia lhe serei merecedor de um quarto.

Texto ignóbil

Não há forma de fugirmos de nós próprios. Quando da família só restar a nossa carcaça periclitante, suspensa em pontes de batimentos cardíacos num hospital manhoso onde só o BI nos sabe o nome — ainda somos nós que lá estamos. Aquela vaga coleção de células, maioritariamente pele, onde dois globos oculares gastos rodopiam confusos por entre a nébula. Sim — essa é a nossa despedida parva a um universo que se está nas tintas.

Entre a procura de uma gargalhada no próximo e a tentativa de nos afastar dessa cama de hospital, há uma ligação ténue. Houvesse em mim motivos para me desligar desse catéter mental, tinido eterno da mente, fá-lo-ia num ápice. A verdade é que, por mais pessoas que conheça e por mais que me melhore ou tente fazê-lo, cada vez me sinto mais próximo de não conhecer ninguém. A cama sabe-me insistentemente a não minha. Perco apegos — hortas humanas que deixo cair em descuido. Digo-me desprendido de materialismos, e refugio-me nesse pensamento como se de um pequeno forte mental se tratasse. Valorizo artes de fazer e esqueço-me, conscientemente, das de deixar ser. Sou vão e desconsiderado, e não se espante quem me ler a escrever assim. É das coisas mais optimistas que escrevi em anos, fora toda a maluqueira que me sai quando invento personagens.

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