Pedra sobre pedra

As manhãs recebem-nos de braços abertos, o sol primaveril desenhando os muros sobre o alcatrão. Hortas surgem ordeiras e aprumadas, as suas fileiras demarcadas por garrafas de plástico em paus ao alto — lembram-me do quintal de um amigo do meu avô, na Póvoa, na rua das Hortas. Ele delimitava os seus canteiros com garrafas de vinho enterradas na terra, as suas bases ao alto. Desta feita, formava carreiros com rodinhas côncavas de vidro multicor. Nem o meu avô, nem o seu amigo, nem o quintal com as garrafinhas sobreviveram.

Lajes de pedra dormem ao sol, quentes, sob estendais vazios. Gatos vigiam-nos de longe, cães de perto, humanos de passagem. O autocarro da Marques faz inversão de marcha, carregado de estudantes para as escolas de Viseu. Do tractor vermelho, salta um senhor munido de uma enxada, que nos dá o bom dia. Acelera o carro da padaria, abranda o carro da associação. Pássaros deixam-se enganar por corvos postiços e tiras de alumínio ao vento. Ao longe, ouve-se um galo esganiçado — que acorda sempre a uma hora diferente.

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