Palavras perdidas

Custa-me falar-te. Ao que chegaram os nossos dias. Ter-te numa sombra de quem eras, anos a fio defronte da televisão a um volume ensurdecedor. Queria eu que me ouvisses como te tento ouvir, incapaz que estás de trazer coerência aos sons, perdido e encurralado nas vicissitudes da velhice. Foste de tudo um pouco. Polícia, músico, sapateiro, amolador. Cuidavas de um pomar remoto para o qual percorrias quilómetros de bicicleta. Criámos uma geração de gente que nos quer, ainda que nunca nos baste o seu querer, e fizemos da nossa casa um lugar feliz.

Levanto os olhos sobre os óculos de ler, e a custo vejo-te por entre a penumbra das noites. Antes de bisavô eras avô. Antes disso pai. Agora és um poucochinho de gente, uma memória viva que me consome e que dia após dia me achincalha o coração, rendido que estás à poltrona, ajudado por enfermeiras, rezingão, teimoso, fechado numa expressão bolachuda e desdentada que não era tua. Doem-me as carnes também, sabes. Já fui remendada mais vezes que a nossa casa, ambas rendas que se pagam até se apagarem. Pergunto-me, por entre as refeições e os jornais, a visita dos netos e a rega das plantas, se foi para isto que nos quisemos. Chamas-me, num aperto. Lentamente me levanto para te acudir, eu aflita de não poder contigo. Fujo dos teus olhos, como quem foge da chuva e do frio, com pena por te saber aí dentro, em apuros de vida, e eu sem te saber puxar. Somos criaturas de palavras curtas. De educações rígidas e caligrafias sangradas. Nada nos foi dado, e quando o pouco que temos se nos foge, é-nos duplamente fugido. Tombado junto a mim, tenho-te no toque, por entre as mantas. Passeio os dedos pelas tuas costas sobreviventes. Somos o que ainda conseguimos. Sob as pálpebras, sei que também foges ao meu olhar, com toda a tua dificuldade, todas aquelas pequenas derrotas que nos dá o corpo. E eu sei que o meu olhar fugido e o teu olhar fugido um dia deixarão de se evitar. Por entre as plantas do nosso quintal, longe das vistas, vais encontrar a minha face com a tua mão artista, e o nosso não-sorriso de tantos anos e de tantos medos vai dar lugar ao mais belo dos sons, aquela tua voz perdida, que me dizia tão belas palavras.

Respostas de 6 a “Palavras perdidas”

  1. Avatar de Margarida de Sacadura Levy
    Margarida de Sacadura Levy

    Texto maravilhoso de verdade e força!
    Todos temos debaixo dos olhos dramas iguais a este!Faltam-nos as palavras para designar o indicivel…para preencher esta presença/ausência de seres que amàmos e amamos,mesmo se nada resta do que foram…

    Liked by 1 person

    1. Muito, muito obrigado margarida pelo comentário.

      Gostar

      1. “somos o que ainda conseguimos”. Tão belo texto, tão puras e cruas palavras! Escreves com um mestria rara e o resultado é de uma beleza e verdade muito grande.

        Liked by 1 person

      2. Mais uma vez muito obrigado Pedro. Os teus comentários dão-me muito ânimo. Fico muito contente. E vou levar em consideração a tua sugestão. Um grande abraço

        Gostar

  2. Avatar de José Manuel Goiana Mesquita
    José Manuel Goiana Mesquita

    Pois bem: li e reli, e gostei. Na minha opinião consegues dar ao que escreves um registo e um sentido denotativo ( as circunstâncias, os acasos … ) ao mesmo tempo conotativo ( a essência das coisas, o ser ). Amplias as circunstâncias que escolhes ( por alguma coisa são … “circunstanciais” … ! ) no sentido da aproximação à essência. E isso não está ao alcance do escrevente comum.
    Não sei se leste Ortega Y Gasset, mas intuis o que ele tão bem ensinou: por palavras dele, “o homem é o homem e a sua circunstância” ( se não é assim ‘ipsis verbis’ é parecido ). Mas isto está lá, no teu texto, justamente naquilo que escreveste ( e não apenas ‘grafaste’ ) e, se sabes usar este método, como sabes, é porque funcionas bem com o método do pensamento ( da filosofia ) a montante do método da escrita ( da linguística ). Por outras palavras: podias ter escrito que também foi sapateiro, botânico, escultor, e de certeza estávamos todos de acordo. Mas ia ser sempre além da essência. Pois que, como foste além da denotação e entraste com naturalidade no território conotativo, saiu um texto impecável.
    Um texto próprio de quem usa ler. E tu lês, caso contrário não conseguias escrever assim.
    Parabéns, fixe man. Curtição.

    Gostar

    1. Tio. Muito obrigado por este comentário incrível. Fico muito contente.. Mesmo. Um grande abraço!

      Gostar

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s


Start a Blog at WordPress.com.

%d bloggers gostam disto: