A ordem da bicada

Antes de mais, devo a esta página um pedido de desculpas pelo meu atraso — atropelada pela confusão dos trabalhos, a partilha desta segunda-feira fugiu-me da mão, mas eis-me rejuvenescido e cafeinado, prontíssimo para consertar a omissão.

Nauta dos vídeos, eis-me novamente em terra firme! Para mim e para a Mari foram duas semanas de viagem, e já sentíamos saudades das nossas penudas e das suas galinhodinâmicas. E porque já passou algum tempo desde que vos macei a escrever sobre elas, trago novas sobre a Guerra dos Tronos da Capoeira.

Tudo corria bem no nosso quintal, até há uns meses a poedeira cinzenta (a líder) começar a ter o papo muito inchado. Depois de nos informarmos, começámos a dar-lhe um antifúngico e a isolá-la pontualmente, a massajar-lhe o papo e depositar um antibiótico pela água. O problema aparentemente resolveu-se, o papo esvaziou, e ela voltou à sua actividade normal.

(Tudo isto, segundo uma senhora que vende galinhas no mercado de Matosinhos, podia ser resolvido em segundos com um cortar do pescoço).

Após a doença da galinha-mor, o mal estava feito: a vida não voltou à normalidade. Longe disso: o dano na sua reputação era profundo e o mundo é implacável. Outrora a maior e mais imponente das quatro, a Gandalfa perdera força e presença no restante bando. A pecking order estava em risco.

E qual era o restante bando? Recapitulando:

  • A Ginger (poedeira castanha) é a galinha classic. Sem dúvida a nossa galinha mais diligente, faz o seu serviço cedo, põe ovos enormes, e é gentil nas suas bicadas quando lhe damos couve.
  • A Branca (poedeira succex, branquinha com pormenores pretos) é a nossa galinha mais pamonha. Pesadinha, deixa-se apanhar com facilidade, pia como uma pomba, e tem um andar cómico e um correr desajeitado.
  • A Lulu (pedrês portuguesa, preta com apontamentos arroxeados) é levada do diabo. Irreverente, sempre a pôr os ovos em esconderijos novos, uma autêntica mestre da evasão e velocista olímpica.

Quando a Gandalfa voltou da sua reabilitação, começámos a perceber que ela e as outras estavam constantemente em atritos. Antes de dormir, envolviam-se em disputas à bicada — a Gandalfa a atacar as outras todas. Imagino que a fazer os possíveis por se impor e restabelecer a hierarquia.

O que antes era um bando protegido pelo olhar atento da Gandalfa (que avisava, chamava, zelava) agora era um bando de três mais a Gandalfa, cada vez mais sozinha, um mero apêndice do bando.

Infelizmente, o problema voltou a agravar-se. O papo da Gandalfa voltou a inchar. Isolámo-la, controlámos o alimento dela para tentar que fosse digerindo a comida, massajámos o papo diariamente, e fomos tentando ajudá-la, vendo-a a definhar aos poucos. Já não tentava fugir de nós: limitava-se a piar, como quem implora para que a deixássemos estar. Se chovesse, dávamos por ela debaixo de um banco de pedra, molhada até aos ossos.

É triste ver um animal de estimação a perder a força e a capacidade. A crista foi perdendo força, caindo para o lado e escurecendo o seu vermelho, outrora tão vivo.

Um dia, ela estava muito quieta, e já quase não abria os olhos. Peguei-a ao colo e levei-a a dar uma última volta pelo quintal. O seu corpo estava extremamente frágil, um peso-pluma. Pousei-a junto a um bebedouro, à sombrinha. Horas depois tinha morrido, a sua cabeça caída sobre a terra.

Eu e a Mari escavámos um buraco para a deixar. Entre movimentos de pá, reparámos que a Branca veio assegurar-se que o serviço estava bem feito. Observou-nos o tempo todo, enquanto pousávamos a Gandalfa, e lhe depositávamos terra em cima.

Depois, a vida continuou. O dia-a-dia corriqueiro das outras três seguiu como se nada fosse. Minto… notavam-se algumas diferenças. Voltámos a tempos de paz, sem bicadas. A Branca, sempre dócil, começou a fazer muito estardalhaço por lhe pegarmos ao colo. O escândalo era tal que não voltámos a pegá-la — e assim finalmente percebemos o motivo. Ela não queria ser pegada ao colo porque o seu status havia mudado. A Branca tinha assumido a liderança.

Agora era a protectora, a vigilante do bando, e não se podia pôr numa posição tão indefesa. Fazia todo o sentido em ela ser a sucessora: a mais gordinha era também a mais robusta, a mais imponente, a que bicava com mais força. E desta forma, após o desaparecimento da Gandalfa, eis que a Branca subiu ao trono.

Um pensamento sobre “A ordem da bicada

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