Ciclos e contraciclos

Quando eu era miúdo, não era fã das aulas de História. Não me entendia com os reis, com as datas, as tensões e as revoluções. Quanto mais informação me davam, mais me abstraía. Quando surgiam testes a essa disciplina, a procrastinação levava-me a estudar na véspera um volume impossível de páginas em atraso. As matérias avolumavam-se e confundiam-se. Nas respostas tentava engrossar ao máximo o que tinha retido, mas os resultados espelhavam a minha ignorância. Sempre fui criativo e gostei de escrever, mas nas aulas de História debatia-me com os textos maciços e os monólogos intermináveis.

O que aprendi foi por osmose. Os filmes e as séries que os meus pais gostavam de ver davam azo a conversarmos sobre temas como as guerras mundiais e o Holocausto. A minha mãe, professora de História, interessou-se e envolveu-se num grupo de estudos sobre a memória do Holocausto. Foi em viagens de estudo a Israel e à Alemanha, e organizou dezenas de exposições na sua escola. O meu irmão João sempre apreciou figuras históricas, os seus discursos, os seus contextos, e o meu irmão Pedro está sempre em cima da actualidade política.

Os documentários ajudavam-me a visualizar as situações e a espaçá-las no tempo. Aos poucos, retive alguns momentos-chave e fui criando uma cronologia rudimentar. Em agosto de 2009, a minha mãe levou-me a mim e ao meu irmão João numa viagem de professores e interessados através da Polónia, com um guia incrível que nos traçou um percurso nos locais onde se viveram alguns momentos determinantes da história do Holocausto.

Perto do campo de Treblinka

É escusado dizer que visitámos locais onde se deram atrocidades de uma escala inimaginável. Ao longo de uma semana, conhecemos cemitérios, guetos, orfanatos, campos de trabalho e de extermínio, sinagogas, memoriais. Cruzámo-nos com sobreviventes. Conhecemos as suas histórias. Percebemos como se procura contar a história das vítimas e humanizá-las, em vez de chocar pelo amontoado dos seus pertences deixados — uma abordagem inicial entretanto revista. Trouxemos muitas memórias desta viagem: entre fotografias, livros e experiências em primeira mão, a aprendizagem foi grande.

Ainda assim, e apesar de estar lá e a conhecer estes sítios e a ouvir estas histórias, era evidente a minha compreensão pobre do contexto geral da História. No momento em que abrisse a boca com pessoas mais entendidas de História ou política, era certo que qualquer coisa que dissesse era acusada de um viés ignorante. Manipulações, guerras fabricadas, interesses económicos, a hipocrisia dos vencidos, etc. — a complexidade geopolítica sempre me fez ouvir, e não falar.

Com o passar dos anos a curiosidade foi-me levando entre vídeos do YouTube, documentários e páginas da Wikipédia — sempre de link em link, tema em tema. Uma das vantagens da Internet é a de conseguirmos seguir um fio condutor com facilidade e abrangência. Como eram os objectos da segunda guerra mundial? Onde viviam as pessoas? Quais eram os veículos e as armas dos soldados? O que continha uma ração militar dos Estados Unidos, ou de Inglaterra, ou da Rússia?

Como se distribuía um campo de concentração? Como foi, nas palavras de um sobrevivente, a vida num desses lugares? O concreto e o palpável — a escala humana, do documento e do objecto — ajudaram-me a compreender um pouco melhor estas situações. A madeira de um casebre num campo de extermínio, o cimento de uma câmara de gás, a árvore defronte de um orfanato, fotografias pessoais das vítimas — as memórias da Polónia foram-se interligando, e a experiência sensorial foi preenchendo os vazios.

Fotografia de uma vítima, Auschwitz-Birkenau

Hoje, como tantos outros, acompanho as notícias e assusto-me com os caminhos e as dimensões da ignorância e da a repetição dos horrores do passado, com uma nova propagação do medo e do ódio. Vejo os movimentos implacáveis da História e apercebo-me da ironia do meu percurso. Enquanto procurava compreender os outros tempos através dos documentos e objectos históricos, o mundo preparava-me um presente novo, concreto, e incontornável.

Delimitação do Gueto de Varsóvia

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