O fio do presente

Há dias em que dou por mim numa intersecção entre o passado aspiracional (“quem me dera um dia”) e o futuro nostálgico (“foi tão bom naquele tempo”). Basta o clima aligeirar um pouco para o cérebro conseguir pensar, e sensação de viver num presente idílico instala-se no corpo. 

É como se levitasse. Pouso o pé quente na pedra fria, bebo água gelada, descanso nas sombras da casa. Por entre a frincha da porta, uma faixa de sol entrecortado pelas árvores borbulha luz com sombra, sombra com luz. Na contraluz, brilha a teia de aranha. O ar viaja entre janelas distantes, e as cortinas, por instantes, também: como se estendessem a mão pelos espaços.

Assim que o corpo se refresca, as cores do dia tornam-se aparentes. Na calma, percebo a verdura das plantas, a intensidade do café, a frescura dos ovos, a textura dos livros, a tranquilidade das noites. Aqui e acolá, junta-se a Mari. Um beijinho, uma frase, uma máquina de costura que trabalha, um áudio de cliente que podia ter sido duas palavras, uma canção que ecoa pelas paredes. Tenho uma profunda admiração pela Mari.

A sua sensibilidade, e por conseguinte a sua empatia, é abrangente — por vezes avassaladora. Esta forma de ser, que em tempos a amedrontou, hoje fortalece. Tanto quanto sei, eu nunca vivi um ataque de ansiedade. Testemunhar a relação da Mari com a sua é uma aprendizagem contínua, a evidência de toda uma paleta de cores que ainda não estou equipado para ver.

Viver num estado de graça é viver numa bolha, e como tal, em risco de complacência. O problema de dias idílicos é mesmo esse: temos de fazer um esforço consciente em nos lembrarmos das intersecções do futuro. Convém dotarmos o nosso presente de uma ansiedade boa, que nos faça antever e precaver mais que o conforto alguma vez fará.

Um pouco deste olhar sobre o mundo, um pouco daquele. Mais acção, menos reacção. Menos sensacionalismo, mais informação. Menos entretenimento, mais arte.

E esse tem sido o nosso exercício: trabalhar em prol dos anos vindouros, invisíveis e misteriosos, sem perder o toque do agora, e na dádiva que representa. Tudo o que é importante na vida acontece nesse momento: no fio ténue que separa o passado do futuro.

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