Marcadores de areia

À terceira tentativa frustrada, levantei os olhos do parágrafo. Um grupo de seniores discutia dinheiros e apartamentos que alguém deixou em herança ao sobrinho. Respirei fundo. Por mais que eu ande, por maior que seja a minha peregrinação até ao lugar perfeito para a minha toalha, há sempre um grupo.

Longe de mim querer mal aos sábios de bronze perfeito, ao defunto ou ao seu herdeiro. Plantei a testa na toalha, ouvindo inadvertidamente o evangelho dos bens deixados ao rapaz como lhe fizesse as vezes de advogado ou confessor.

Lembrei-me do filme Tenet, onde duas personagens discutem uma intriga nuclear de fim de mundo em pleno autocarro. Só me apetecia gritar para o ecrã. Há pessoas à vossa volta, seus imbecis. Uma delas deve estar a tentar ler. Ninguém quer saber da vossa vida privada!

Continue a ler “Marcadores de areia”

A língua do pica-pau

Eu e a pedra da casa bebericávamos uma luz quente, de abraço, que se desprendia dos recortes da folhagem. Eram cinco e meia de um dia de setembro. Ouvia pássaros ocultos na azáfama das folhas, ao passo que caía uma sugestão de chuva de nuvens indecisas.

Que chuva? Abrigado sob as cabeleiras do jardim sonolento, nem a sentia. Que tempo estranho. Sobre mim pairava uma tentativa de névoa, e à distância torravam aldeias sob um sol solto. O calor, esse, banhava as terras por igual — um calor corpóreo, como se os meus órgãos se estendessem pela tarde, e o meu sangue encarreirasse pelas covinhas dos canteiros.

Passava das cinco e meia. O piano ecoava pelas ruelas da aldeia alaranjada. Passos tímidos raspavam as escadinhas do sótão. As cadelas dormitavam pelo chão da cozinha, onde pingava loiça na banca. Não se ligaram as luzes da casa, que também precisa de dormir. Agradecem as sombras acolhedoras, os livros poeirentos e a decoração dispersa, e assim, décadas e décadas de tardes quentes dormiam connosco.

Continue a ler “A língua do pica-pau”