Bico abaixo

Hoje dei uma limpeza às caixas de cartão que se amontoavam no sótão. Dezenas de cubos e paralelepípedos com miolos de plástico foram para a reciclagem. Fez-me lembrar a Póvoa de Varzim no São Pedro, e as montanhas de móveis velhos que se atiravam para as fogueiras na rua. As labaredas levavam consigo cadeiras e estantes velhas, libertando espaço nas casas.

Caixas e móveis são passageiros, movediços, como tudo o que flui. Envolvemos os nossos valores e projectos em plástico bolha, cientes da sua fragilidade, protegendo-os para a sua inevitável viagem. Este foi um ano de projectos. Dois dos meus foram documentários, que devido a sortes dos timings acabaram por se sobrepor na agenda.

Ouvir e escrever, cortar e colar, vou costurando as histórias metodicamente, palavra a palavra. Comigo a navegar nas vidas dos outros, acabo por relegar a minha para segundo plano, e com isto a confusão dos dias amontoa-se. Afundam-se as olheiras, seca-se a pele ansiosa, empoeiram-se os livros que quero ler. Abraço-me à Mari, também nas suas lutas, e juntos seguramo-nos por entre o turbilhão, sete galinhas esvoaçando em nosso redor.

Por falar nelas: não foi um ano fácil para a Branca. A vida corria-lhe de feição até morrer a Gandalfa e o peso da coroa se abater sobre si. Depois, a visita de uma cobra quase a levou, mesmo que indirectamente. Certo dia dei com uma cobra enorme enforcada na rede do galinheiro. Dentro da casinha, estava a Branca de bico aberto, em completo estado de choque. O choque durou dias a fio, de tal maneira que ela nem comia. Enfraquecia de dia para dia. Tememos perdê-la, o que seria o cúmulo, perder uma galinha para a depressão.

Depois de uns dias a forçar-lhe água açucarada e pasta de banana pelo bico abaixo com recurso a uma seringa, percebemos que a Branca voltou a si. Voltou a socializar, e a pôr ovos. Voltou à normalidade — a normalidade dela, pelo menos.

Também não foi um ano fácil para mim. Entalei-me com um pedaço de carne, fazendo-me o feliz contemplado de uma ida às urgências. Tal como à Branca, também me enfiaram um tubo pelo bico abaixo. Entrou de tal maneira a rasgar que tive de ser grampeado de dentro para fora, qual monstro do Frankenstein invertido. A gemer de desconforto, veio-me à cabeça vivamente a personagem do Alien que tem uma criatura a sair-lhe pelo estômago. Depois, passei uma noite no hospital em observação, sob uma sinfonia de beeps e buups.

Na ala do SO do hospital de Viseu estavam mais três homens. À minha esquerda, dormia um silencioso que se mantinha na dele. À minha frente o simpático Emídio, um conhecedor da Póvoa de anos e anos a distribuir óleos industriais pelo Norte do país. O outro homem era o mais barulhento, coitado. Punha os nervos das enfermeiras em franja. Gritava, chamava, pedia para mijar, pedia de novo. Chamava pela Lurdes. Chamava pela mãe. A perna que lhe faltava era certamente a que o mantinha assente ao chão.

Felizmente o meu caso não era o pior. Após uma noite e um dia, tive alta. Desejei as melhoras aos meus colegas, e deixei-os lá. A minha estadia naquele lugar foi breve — um dia a comer papas e sopas, e a levar com a notícia de que o Ronaldo foi jantar à Casa Branca, que bom para ele (é sempre bom comer à pala). Depois, tal como à Branca, uma sucessão de comidas pastosas (e o carinho da Mari) fez-me voltar à normalidade.

E agora que a correria dos trabalhos acalmou, quero desentorpecer estes dedos frios. Vou tirar o pó ao blog, do qual, confesso, já tinha saudades. Aqui por casa os dias estão bonitos, mas gélidos. Agasalhamo-nos até aos ossos, até as bolas do pinheiro tiveram direito a camisolas de lã. Os aquecedores vão-se revezando, passando o seu testemunho através dos dias, neste ciclo que só terminará pela primavera.

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