Díodos emissores de luz

A caixa de ferramentas era uma novidade, mas para aquela ocasião justificava-se. Afinal de contas, eu ia levar coisas importantes para a escola. Os fios eléctricos, as lâmpadas, os motores e as pilhas não podiam ir aos tombos na mochila.

Lembro-me da sensação estranha de ter aquela caixa pesada junto aos pés; lembro-me do sentimento de orgulho do meu colega de carteira, o Hugo, quando afastei os cadernos e comecei a montar junto a ele um circuito eléctrico.

Já o fizera inúmeras vezes, o mais simples dos mais simples: ligar uma pilha a uma pequena lâmpada. Quando uni os terminais, encostando com o indicador o fio descarnado ao polo daquela 9V, ouviu-se o barulho de dezenas de cadeiras a arrastar. Em meu redor, toda uma turma estava de pé, espantada com a lâmpada que subitamente se acendeu.

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Casa de pedra

Ontem foi um dia de aniversário e a casa encheu-se. É uma casa antiga, eu diria orgulhosa, e ainda assim descortinei-lhe nas faces um certo rubor de excitação. Vi-a surpreender-se com o aparato dos carros, após o qual rapidamente se recompôs, já entretida a identificar os convidados que lhe subiam as escadas de pedra. Acordou os músculos discretamente, como que um mestre de sala acordado ao serviço, obstinadíssimo em dar o melhor de si. Senti a sua felicidade por ter um dia generoso para receber os familiares, numa gratidão imensa de os ter juntos. A uns, conhecera infâncias e adolescências, sermões, educações e namoricos. A outros, dificuldades de viagens, de distâncias, de acidentes e de velhices encurtadas. Aniversários, longas férias de amigos, curtas passagens de visita. Copos de água em longas mesas no quintal, após um curto caminhar a partir da igreja. Primas rebeldes em fugas momentâneas, agora vizinhas de coração. Filmes rolando pelas horas da noite, pianos alegres, pianos tristes. São incontáveis os fragmentos de ligações humanas incrustadas na sua pedra. É através dos olhos dos outros que vejo a casa de novo, agora como a anfitriã que verdadeiramente é, sábia para além do seu olhar terno. Do pó das caves ao do sótão, por entre as fotografias e os livros temporariamente empilhados, ela sabe, mais que eu, para que momentos ligavam estas mesmas portas, para que bigodes, coletes, vestidos, casacos e bibes rodavam estas mesmas esquinas, e que pesadelos de criança serpenteavam ou gargalhavam pelos corredores de noite. Frescura das sombras, abafos de verão e desabafos de inverno, navego pelos corredores da nossa casa como se por eles nadasse, num naufrágio que não naufragou mas resistiu aos tempos, tal é o assombro que me apanha desprevenido, tal é a nostalgia que me chega em segunda mão. Rangem as madeiras à minha passagem, como se comigo falassem, procurando despertar-me do hipnotismo vago do dia-a-dia. Não consigo deixar, por vezes, de me sentir um impostor a seus olhos. Sou uma de muitas personagens que lhe caiu para o colo, e que à data não lhe trouxe nada senão uma parte de si, e uma parte de pouco é nada. Pergunta-me a casa, não alheia aos anos que passam, se entre o verão anterior e este construí algo. Ela, que me conhece até aos ossos, sente o meu silêncio. Tantas vezes fora laboratório de sonhos, palco de experiências, vidro de objectivas de câmaras e telescópios. A minha incapacidade de a descrever contrasta com a sua facilidade de me descrever a mim. A cada verão que cá venho, ouve-me um suspiro. Abraço o cão, deliciosamente alheio à personalidade da nossa casa, e pergunto-me, se um dia lhe serei merecedor de um quarto.

Amanhãs de improviso

Foi antes de ontem, e de ontem, e de ontem. O cenário era algo simples, com um divã básico e uma secretária à antiga, junto da qual conferenciavam cadeiras almofadadas de um encarnado vivo. Ao centro, uma janela fosca, ladeada de cortinas pouco insuspeitas, e estantes falsas compunham as paredes ocas.

À boca de cena, uma pianista de colete e laço improvisava músicas misteriosas, e do lado oposto, num cadeirão parcamente iluminado por um miserável candeeiro, encontrava-se uma detective. De cabelo loiro apanhado e pernas cruzadas sob uma gabardine pastel, preenchia as palavras cruzadas num jornal, indiferente às centenas de pessoas que se iam aglutinando ao longo das fileiras da sala de espectáculos.

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Filamento

Os olhos percorreram as paredes num frenesim sôfrego, em busca de algum ponto de apoio. Acordara como quem cai, amparado após a queda por um mar de lençóis brancos.
O hotel. Ainda estava no hotel.
A manhã, essa, crepitava tímida por entre as cortinas, delimitando um antro de móveis produzidos em massa. Seria um quarto de hotel, um oitavo de hotel, ou um dezasseis avos? Era um outro certamente. Incompleto por condição. Perdido numa imensidão de outros iguais, numa cidade que na verdade pode ser qualquer uma.
Recusando-se a encarar o dia, tapou a cara, tenso, massajando a face gasta. Apercebeu-se do seu próprio corpo molhado de suor, da tensão retida nos seus músculos, e, inesperadamente, de que havia algo mais ali. Era uma memória ‒ mínima, ténue ‒ que contra tudo ainda vingava, pairando pelo quarto.

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