A nudez das minhas mãos expõe a sua fragilidade. Observo a elegância dos ângulos do pulso, da amplitude dos nós, daquele mindinho que me incomoda, e aprecio a viagem das falanges, falangetas e falanginhas pelo mundo. É uma de aventura e de muitos uniformes e fazes-de-conta.
Se os olhos espelham a alma, as mãos dão-lhes corpo, digito eu ao teclado, numa chuva de caracteres liderada pelos meus polegares, indicadores e médios. Ocorre-me pensar nas minhas mãos e em todas as luvas com que as disfarço. São luvas de mergulho, luvas de combate e luvas de neve.
As de mergulho conservam-me o calor corporal nas descidas aos submundos ondulantes. Munido delas, passo as mãos frágeis por submarinos afundados, barcos naufragados, aldeias submersas, e as bizarras florestas de vida que são as saias dos mexilhoeiros galegos. Rodo o pulso para consultar o computador de mergulho, onde a profundidade se conta e o tempo de passeio se desconta, e também gesticulo para comunicar ao meu parceiro a quantidade do meu ar. Na mudez encantadora das águas, só se ouvem respirares e risos.
As luvas de combate vestem-se sobre ligas de pano bem rodadas pela geografia da mão, para a proteger dos maus impactos. O kickboxing é um dos meus maiores desligares. Despeço-me do dia com a catarse do bater saco, a preocupação pela técnica e do acertar direito — isto de apontar os nós certos da mão fechada, para o directo, o gancho e o oblíquo não me comprometerem as mãos. Antes e depois de um exercício, tocamos luvas. O mais leve dos impactos é também o mais forte de todos eles. Ascendem nuvens de vapor dos ombros dos meus colegas, pingam lagos de suor sob sacos de couro molhados. Dispo a t-shirt negra, encharcada, agora uma epiderme da epiderme, e descolo as ligas da pele relutante. No balneário fala-se do iminente jantar: arroz de tamboril, sonha uma voz no chuveiro, enquanto examino os vincos e as texturas do pano nas minhas mãos trémulas.
As de neve usei-as duas vezes a fazer snowboarding. Sou um principiante absoluto nessa arte. Caí muito para começar e estou na fase em que, se quero melhorar, tenho de me predispor a cair mais, seja em neve fofa de algodão ou num duro chão gelado. Atento muito aos pulsos no meu levantar. Os protectores de pulso dão-lhes guarida, enquanto me vou aventurando aos ziguezagues e meias-luas pelas vastas pistas de neve de Andorra. “Está tudo bem, Gui?”, perguntam-me pelo walkie-talkie, quando descanso numa lateral. “Tudo óptimo!”, respondo enquanto crianças de uma escola de ski passam por mim em fila indiana.
Diferentes mãos são diferentes disciplinas, diferentes grupos de amigos, diferentes mundos de gestos. Apesar da nudez das minhas quando escrevo, ei-las vestidas de contextos e de reflexos. Curiosamente, quando digito num teclado, as minhas recorrem às experiências de emergência, a artifícios do imediato, e a todos os lugares-comuns desinteressados de um dia-a-dia desligado. Escrever ao computador é escrever à superfície, onde o ar não escasseia, e a vida marinha não visita.
Tal não acontece quando recorro a uma caneta e a uma folha em branco. As mãos de escrita vestem-se com aquelas luvas de tinta, e eis-me um artesão diferente. Sinto o caudal de pensamento transformar-se pelo tornear do pulso, pela tendências dos tendões e a alavancagem dos nós. Caligrafias amedrontadas, sulcadas na página, ou elegantes parágrafos bem dormidos — o resultado viaja a anos-luz dos ficheiros higienizados e despressurizados do computador.
Sempre senti que é para o manuscrito que se segreda e se sonha. Quando desenho as palavras sinto na caligrafia os impactos, os toques, os frios e calores, a família, a amizade e a solidão. Conto à página o que não conto ao próximo. Um dia que morra, estou todo lá. E não aqui. Nunca aqui.