Amanhãs de improviso

Foi antes de ontem, e de ontem, e de ontem. O cenário era algo simples, com um divã básico e uma secretária à antiga, junto da qual conferenciavam cadeiras almofadadas de um encarnado vivo. Ao centro, uma janela fosca, ladeada de cortinas pouco insuspeitas, e estantes falsas compunham as paredes ocas.

À boca de cena, uma pianista de colete e laço improvisava músicas misteriosas, e do lado oposto, num cadeirão parcamente iluminado por um miserável candeeiro, encontrava-se uma detective. De cabelo loiro apanhado e pernas cruzadas sob uma gabardine pastel, preenchia as palavras cruzadas num jornal, indiferente às centenas de pessoas que se iam aglutinando ao longo das fileiras da sala de espectáculos.

Competition, with seven letters?”

O público vizinho, eu e o meu primo inclusos, ajudou a detective a resolver o puzzle.

Rivalry! Thank you very much. On to the next one…”

Não seria o seu último puzzle naquela noite. Chegada a hora, e espreitado o seu relógio de pulso com um relance, a detective fechou o Edinburgh Evening News e abriu as hostilidades.

Daí por diante, explicou para uma plateia emudecida, aquele seria um espectáculo de improviso, puxado do imaginário dos mistérios da Agatha Christie, o que significava que, mediante pontuais sugestões do público e o mais simples dos sorteios para ver quem era a vítima, a história ir-se-ia construindo em cima do joelho, deixa a deixa.

Acto contínuo, um par de personagens entrou em palco e começaram uma cena, sob a banda sonora imediata da pianista. A cena pediu outra, que naturalmente ligou com outra e outra, o público num constante riso e profunda captura. De vez em quando, a detective parava a narrativa, como quem prime pausa num telecomando a seu bel-prazer, e clarificava algo ou dava oportunidade aos personagens para se exprimirem melhor. À medida que o trama se adensava, a nossa Poirot ia calmamente tomando as suas notas num caderninho preto.

Fim do primeiro acto — a dona do restaurante italiano apareceu morta numa gigantesca malga de esparguete. Quem a matou? É uma boa pergunta. Ninguém sabe. O público não sabe, as personagens não sabem e os actores nem sonham — não há dramaturgo que os valha.

Depois, a intriga aquece. Quando as personagens convocam um detective para resolver o estranho caso da morte da cozinheira, a nossa amiga das palavras-cruzadas entra em cena. Vemos que as personagens tinham motivos para fazer mal à cozinheira. Há intenções e segredos que são revelados, e nos levam a suspeitar de um, e depois de outro. Vemos discussões em flashback! Confronto! Chantagem! Fúria!

A detective impõe-se perante os outros, faz perguntas, põe os suspeitos entre a espada e a parede. Estes esquivam-se, inventam, dão voltas no discurso, mas ela não se deixa ficar. Com recurso às suas meticulosas notas, e sempre a basear-se nas informações que nos foram dadas, reune todos os suspeitos e, com um extenso monólogo em crescendo, revela o culpado e o seu nefasto motivo para matar a dona do restaurante.

Caiu-me o queixo. Incrível. Como quem ata o laço final, a pianista fecha o espectáculo, enquanto os actores se curvam perante um mundo de palmas.

Entre esse dia e o de hoje, passou um piscar de olhos. Já não estou em Edimburgo com o meu primo. Já não estamos no mês de agosto. Estou numa sala-de-estar diferente, sem divã, onde o pianista não usa laço, os livros das estantes não são postiços, não há actores, a intriga é mínima e a a dona do restaurante assassinada, nem vê-la.

Passo os meus dias a ler e a ouvir histórias. O meu trabalho é o corta-e-cose que compõe narrativas, o editar de momentos filmados — o transformar de pequenos acidentes de caos num de caos controlado. Não deixa de haver a sensação do improviso. Afinal de contas, o improviso é a desordem natural das coisas, é a qualidade de tudo o que vive, a estranha mecânica da acção-reacção que nos acompanha do início até ao fim dos dias.

Dizia o mal-dormido protagonista da “peça escocesa” que a vida é uma sombra andante. Um pobre actor, que se pavoneia e queixa durante o seu tempo sobre o palco, e depois deixa de se ouvir.

É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa.

Não sei porque gosto tanto dessa história. Será pelas três bruxas e a sua profecia enigmática, mas precisa? Será o apelo das boas histórias o seu desfecho limpo, a sua estrutura clara e a sua lógica inerente, que tanto ilude a realidade? Ou será aquele gesto de estender a mão, que o autor faz ao leitor, e nos diz, eu entendo o teu caos?

Posso pegar em tudo o que eu e o meu primo assistimos no Fringe, e resumir nessas palavrinhas. Os espectáculos de improviso. Os stand-ups. Os concertos que ouvimos, os espectáculos mais tradicionais, as outras comédias e todo o sketch comedy.

Eu entendo o teu caos.

Houvesse um público para todas as nossas experiências, as nossas viagens, experiências e erros. Todas as pequenas e grandes hesitações, todas as ficções e falta delas. Houvesse um público que entendesse o nosso caos. Corra mais um dia de improviso, e venha o seguinte, e o amanhã, e amanhã, e amanhã.

Venham todos esses amanhãs, um atrás do outro. E sobreviva a esperança de que, algures entre dois deles, mais que apenas entendermos o nosso caos, aprendamos a viver com ele.

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