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Amigos, cadernos e sons
Os vidros da casa crepitavam com a chuva, num breu alaranjado. Aquele terceiro andar era frio e isolado, e a ausência de preocupação estética dos seus arrendatários era óbvia. O essencial e nada mais que o essencial revestia as divisões daquele lugar. As paredes continuavam uma imensidão branca, e as chaves novas de cada porta…
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Díodos emissores de luz
A caixa de ferramentas era uma novidade, mas para aquela ocasião justificava-se. Afinal de contas, eu ia levar coisas importantes para a escola. Os fios eléctricos, as lâmpadas, os motores e as pilhas não podiam ir aos tombos na mochila. Lembro-me da sensação estranha de ter aquela caixa pesada junto aos pés; lembro-me do sentimento…
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Olhares ambarinos
É para mim um acontecimento nobre quando um animal pousa a sua cabeça em algo suave, e me observa. A gata do Tomé tem 12 anos. Fita-me do outro lado da sala, firme, com a tranquilidade característica de um felino. Já o meu infinitamente adorado cão, com a fisionomia de uma duna poveira, também se…
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Marcadores de areia
À terceira tentativa frustrada, levantei os olhos do parágrafo. Um grupo de seniores discutia dinheiros e apartamentos que alguém deixou em herança ao sobrinho. Respirei fundo. Por mais que eu ande, por maior que seja a minha peregrinação até ao lugar perfeito para a minha toalha, há sempre um grupo. Longe de mim querer mal…
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Casa de pedra
Ontem foi um dia de aniversário e a casa encheu-se. É uma casa antiga, eu diria orgulhosa, e ainda assim descortinei-lhe nas faces um certo rubor de excitação. Vi-a surpreender-se com o aparato dos carros, após o qual rapidamente se recompôs, já entretida a identificar os convidados que lhe subiam as escadas de pedra. Acordou…
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Luvas de tinta
A nudez das minhas mãos expõe a sua fragilidade. Observo a elegância dos ângulos do pulso, da amplitude dos nós, daquele mindinho que me incomoda, e aprecio a viagem das falanges, falangetas e falanginhas pelo mundo. É uma de aventura e de muitos uniformes e fazes-de-conta. Se os olhos espelham a alma, as mãos dão-lhes…
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Amanhãs de improviso
Foi antes de ontem, e de ontem, e de ontem. O cenário era algo simples, com um divã básico e uma secretária à antiga, junto da qual conferenciavam cadeiras almofadadas de um encarnado vivo. Ao centro, uma janela fosca, ladeada de cortinas pouco insuspeitas, e estantes falsas compunham as paredes ocas. À boca de cena,…
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Palavras perdidas
Custa-me falar-te. Ao que chegaram os nossos dias. Ter-te numa sombra de quem eras, anos a fio defronte da televisão a um volume ensurdecedor. Queria eu que me ouvisses como te tento ouvir, incapaz que estás de trazer coerência aos sons, perdido e encurralado nas vicissitudes da velhice. Foste de tudo um pouco. Polícia, músico,…
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A língua do pica-pau
Eu e a pedra da casa bebericávamos uma luz quente, de abraço, que se desprendia dos recortes da folhagem. Eram cinco e meia de um dia de setembro. Ouvia pássaros ocultos na azáfama das folhas, ao passo que caía uma sugestão de chuva de nuvens indecisas. Que chuva? Abrigado sob as cabeleiras do jardim sonolento,…