Os vidros da casa crepitavam com a chuva, num breu alaranjado. Aquele terceiro andar era frio e isolado, e a ausência de preocupação estética dos seus arrendatários era óbvia. O essencial e nada mais que o essencial revestia as divisões daquele lugar. As paredes continuavam uma imensidão branca, e as chaves novas de cada porta mantinham-se, aos pares, penduradas nas divisões respectivas. Não havia nada ali que não fosse passageiro, fugaz, como um pensamento.
Vivi dois anos naquela casa. Durante a sua maioria, partilhei-o com dois amigos, e tive bons momentos lá — mas também estive muito tempo sozinho.
Só com a perspectiva da distância é que me apercebo o quanto asséptico, insosso e estéril era aquele apartamento, como se tivesse seguido as pisadas das desinfecções paranóicas do pico da pandemia, e assim, deixasse a humanidade ser transplantada para fora, deixando no seu lugar um fosso de funcionalidade minimalista.
Lembro-me de passar anos a pensar que, se pudesse almoçar um comprimido, era a melhor forma de resolver o almoço, e de assim poder usar aquela hora melhor. Almoçar era uma tarefa, assim como trabalhar, e assim como tudo o que estava relacionado com o trabalho, quanto mais eficiente e impessoal fosse a realizar as tarefas melhor. Daí que aquele apartamento era mais uma ferramenta para cumprir um propósito — não era uma casa, muito menos um lar.
Uma grande percentagem do meu tempo ali foi na revolução dos dias, como um barril que desce uma ladeira, ganhando ímpeto, até perder momento numa extensão plana, ou despedaçar-se contra um obstáculo. Trabalho, compras, compras, trabalho, uma corrida de vez em quando, através dos mundos de cimento do Porto.
Aos ouvidos chegava-me a companhia de estranhos, através da multiplicidade de podcasts e audiolivros que me preenchiam os vazios. Quantas e quantas vezes as entrevistas do Marc Maron me fizeram companhia a lavar a louça ou a pôr a roupa a secar? E o CEO da Disney, que me acompanhou a montagem dos móveis do IKEA, um sábado inteiro? Quantas dezenas de entrevistas foram abafadas pelo som da água a correr, enquanto tomava banho? Inflexões, reflexões, interjeições, exclamações: os fantasmas seguiam-me, pairando em meu redor, todos provenientes da minha JBL Flip 5 verde-petróleo que se tornou a minha sombra.
Depois ia para o carro, com a companhia dessas vozes, desligadas de tudo o que é corpóreo, fazendo-me companhia no trânsito. No trabalho, sempre que podia, essa companhia ia-se mantendo, só pontualmente quebrada. A monotonia e espiral descendente só tinha o contraponto dos meus projetos pessoais. Havia um mundo em mim à espera, como que posto no congelador.
Apesar de trabalhar perto e de viver com dois amigos, no Porto sempre me senti como que o tripulante único de um satélite a orbitar a Terra. Tinha comigo o essencial para sobreviver, mas o meu todo estava lá em baixo, guardado algures numa caixa.
*
Eu e a Mari mudámo-nos para uma casa antiga de família, que é o completo oposto: esta casa está carregadinha até ao tecto de histórias. Apesar de já não ter a quantidade museológica de objectos que teve em tempos, nas suas divisões há objectos que me remetem para uns bons 25 anos de convívios, de brincadeiras, de invenções, de filmes, de descobertas. Após um mês de trabalho intensivo, chegou a oportunidade de respirar um pouco e agarrei-a com unhas e dentes. Finalmente pude debruçar-me sobre os papéis e as recordações que durante anos guardei no sótão em caixas pesadíssimas.
Mensagens microscópicas em papéis recortados de fins do caderno, endereçadas com smileys, passadas durante as aulas de filosofia do 11º ano; textos que escrevi a preparar uma personagem no teatro; contos, crónicas, apontamentos, listas, guiões e cartazes de peças, bilhetes de cinema e de concertos, guiões de curtas e de sketches. Mostrei à Mari a fotografia da minha turma no 12º ano, e posso dizer que sinto um enorme orgulho no núcleo duro que ali que se aguentou através de todas as minhas fases. Apoiaram-me quando escrevi o livro. Apoiaram-me quando fiz o filme, e apareceram nele. Apoiaram-me durante os tempos da FEUP, que não foram fáceis. Ficaram felizes quando entrei em Som e Imagem. Viram as coisas que fui fazendo, umas más, outras piores. Beberam comigo quando festejei a minha entrada numa empresa da área, e mil e um momentos assim se sucederam.
Nesse dia contei à Mari o quanto me custava que alguns projectos tivessem durado tanto tempo, com tanta dedicação e carinho, para depois de terminados viverem em caixas e gavetas. Naquela noite, estava em luto por todos os projectos, pequenos ou grandes, que ficaram nos entretantos.
No dia seguinte, já com as caixas todas arrumadas e etiquetadas, e com os meus livros mais antigos — pela primeira vez — dispostos numa estante, senti um orgulho grande de os ter ali. Para cada projecto terminado e público, há três guardados e tapados. Para cada amigo que se prendeu aos nossos ossos, há três que seguiram o seu rumo.
*
— Um feiticeiro não chega tarde nem cedo, chega precisamente quando pretende.
Acho comovente como o Gandalf não está preocupado em chegar tarde ou cedo a casa do Bilbo. Na verdade, para ele não existe tarde ou cedo: apenas a hora que ele decidiu. O que é que isso diz do Gandalf? Lá porque é feiticeiro, a boa educação não lhe ficava nada mal. Por outro lado, também gosto que pensar que a resposta que dá ao Frodo é uma de brincadeira, porque na verdade, não há cedo nem tarde para ele chegar, pois é sempre bem recebido.
Pois, porque apesar das vidas deles, e os seus propósitos na Terra Média serem radicalmente diferentes, o velho mago sabia que no Bilbo iria encontrar traços de uma das mais fantásticas criaturas do imaginário: um amigo.
Talvez esse amigo estivesse um pouco mais anti-social desde a última vez que se viram, ou mais maniento, intransigente, e impaciente com os familiares distantes. Na verdade, Bilbo ficou felicíssimo por vê-lo, e prontamente lhe forçou-lhe bolos e vinho pela goela abaixo, antes de irem mandar uns bafos criativos para o jardim. Não há cá dragões ou anéis. Só bebida, comida e tabaco.
Há algo nas amizades antigas que se torna difícil de destrinçar, porque entra na nossa própria matéria-prima. Até que ponto somos amigos porque calhou, ou somos amigos porque assim o quisemos e trabalhámos para isso? Torna-se difícil perceber até que ponto a afinidade forte nos torna parte uns dos outros, ou, porque somos parte uns dos outros, temos uma afinidade forte. Tornamo-nos uma peça única, completa só com a presença do outro. Dito isto, considero-me um afortunado nas amizades que me caíram ao colo, e tenho um imenso orgulho na nossa capacidade de as manter até hoje.
Após dois anos a viver naquele apartamento satélite, com a minha vida espalhada em três sítios, eis que cheguei a casa novamente. O meu todo está completo. Os meus livros estão à vista, e todos os meus amigos estão convidados a vir. A hora de almoço, na companhia da Mari, é sempre um prazer. Consigo dedicar-me aos meus projectos, e passei o último mês e meio a recolher todas as peças deste puzzle que é o meu, e a uni-las num todo coerente.
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Dei por mim a ponderar se partilhava aqui que estou feliz — como se fosse algo para esconder. As redes sociais formataram-me a desconfiar de todas as manifestações de felicidade. Tornou-se tudo uma farsa, é tudo plástico e fabricado. Reparei no meu cinismo, e reparei que, independentemente disso, estou efectivamente feliz, e percebi que é o meu blog, e nele escrevo o que quero e bem me apetece. Estou feliz como já não estava em anos e anos e anos. Os meus dias têm significado, e pela primeira vez sinto que estou a construir alguma coisa, num sítio a que chamo lar, com uma pessoa que me é muito especial, rodeado de família e de amigos. Sem vozes, sem ecos. Sem reverberações pelo espaço, num terceiro andar perdido algures na Areosa (a coluninha verde-petróleo, essa, mantém-se).
Reparei que a última vez que escrevi aqui foi há 501 dias. Não estou muito orgulhoso desse número, mas ele tem uma razão muito óbvia de ser: nos últimos anos, a escrita não foi para mim mais que um bunker nuclear. Sempre me socorri dos meus cadernos (o azul, o verde e o preto) nos momentos em que estou mais aflito e a precisar de perspectivar o meu mundo, mas os poucos textos que chegavam a este lugar eram um passo à frente, como se para além da ajuda do desabafo, precisasse de estender o meu braço ao leitor.
A minha insegurança fazia-me sempre precaver o texto com um pouco mais, ou um pouco menos, de forma a fugirem ao concreto, como uma forma de me disfarçar e de me esconder, dentro de textos, ainda assim, profundamente íntimos.
Depois de escrever sobre o meu tio, não voltei a sentir que um texto sobre mim se enquadrasse aqui (não era comparável). O que ponderava publicar tremia de pudor, por ousar ocupar o mesmo espaço. A somar a isto, raras vezes necessitei do bálsamo da escrita para tratar das feridas, porque tinha ajuda profissional para me ajudar a organizar interiormente, construir as minhas barreiras, definir as minhas prioridades, e construir o meu percurso.
Mas eis chegado o momento de quebrar este silêncio, e como tal, este texto serve para dar um passo para libertar os dedos e continuar a escrever. Tenho, acima de tudo, de deixar de encarar a escrita como a solução prescrita para as crises agudas, e passar a recebê-la regularmente nesta casa que é a minha. Como um amigo. Que não chega tarde, nem cedo.
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