Marcadores de areia

À terceira tentativa frustrada, levantei os olhos do parágrafo. Um grupo de seniores discutia dinheiros e apartamentos que alguém deixou em herança ao sobrinho. Respirei fundo. Por mais que eu ande, por maior que seja a minha peregrinação até ao lugar perfeito para a minha toalha, há sempre um grupo.

Longe de mim querer mal aos sábios de bronze perfeito, ao defunto ou ao seu herdeiro. Plantei a testa na toalha, ouvindo inadvertidamente o evangelho dos bens deixados ao rapaz como lhe fizesse as vezes de advogado ou confessor.

Lembrei-me do filme Tenet, onde duas personagens discutem uma intriga nuclear de fim de mundo em pleno autocarro. Só me apetecia gritar para o ecrã. Há pessoas à vossa volta, seus imbecis. Uma delas deve estar a tentar ler. Ninguém quer saber da vossa vida privada!

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Pequenos papéis

Passa-te pelos olhos uma vaga de tristeza. Cais as mãos do parapeito e descais os olhos sobre os discos, os livros, pequeninos papéis.

Fossem os dias aquele sol que te banha a casa e te abre as cortinas de par em par. Que se refugia entre as tuas pálpebras e os olhos nelas inquilinos, esses teus pedaços de tempo, descidos ao presente após os risos, remetidos ao passado após os choros, e ao futuro após os gemidos.

Querias os dias assim. Perdidos pelas horas, teus, e dos teus livros. Teus e dos teus vestidos, das rendas com que tens casos, mantas com que te encasacas, e de todo o mundo de pessoas que te passam à janela sob os discos, os livros, os pequenos papéis.

És tua e da bicicleta, da tua caixa de correio, das frutas que te adornam os cantos, dos postais que recebes. Frutos dos mimos que plantas pelo mundo.

Quantos de nós te vimos, por uma vez, num vislumbre? A ti e à tua harmonia, num jeito de gente, em amor contigo mesma?

Deixas-te depois verter entre os pensamentos de quem te testemunhou, como tinta que cai entre as páginas. Fazes-te cair, peso morto, e a gravidade que te ampare. Vertes, sangue dos sonhos, qual crime irresoluto dos suspiros, qual aroma indecifrável da memória, poema transparente em páginas caídas. Não há como escapar-te.

Até que te escapas tu a ti. Cais tu nos teus olhos, na vaga de tristeza que os tomou. Cais no nada dos pequeninos dias.

Restarão os discos. Os livros. E a papelada.