No calor intenso daquela cozinha, Júlio respirava com dificuldade. Mais por capricho do patrão que por outra coisa, calhava-lhe sempre a preparação das batatas, o empratamento, e a fritadeira. Naquela agitadíssima noite da Póvoa de Varzim, as horas de um turno parecem infinitas. Nem todas as noites são o São Pedro, mas todas as outras juntas cansam igual. Com o barrete encharcado de suor, procurava estar acima dos gritos, do chocar doloroso das louças, do calor do óleo que manuseava para fritar batatas – e do pouquíssimo tempo que dormira na véspera.
Era o costume. Discutira até tarde com o pai e com a companheira, ambos enfrascados. Em desespero, bateu-lhes a porta e enviesou pelas ruas, queimando tabaco nervosamente. Entrou no café, mas não ficou lá muito tempo. Os seus costumeiros, vendo-o a sair em tão evidente sofrimento, tentaram ajudá-lo, mas ele deixou claro com uma resposta torta que preferia prosseguir sozinho. Mesmo após deitar-se, sob os lençóis e de olhos fechados, vociferava pelas ruas mal iluminadas daquele bairro, com o coração aos saltos, e um avassalador medo a apertar-lhe a garganta.
Lutava contra os dias, que, queimados como cigarros, em partes iguais desnecessários e imprescindíveis, lhe acumulavam alcatrão na alma. A farda lavava-se e passava-se, a barba fazia-se, mas o sol perdia a cor, e o ar não satisfazia o peito. Os turnos tinham o condão de alongar a noite, e cada vez os amigos pareciam mais longe.
A solidão feria-o. Nos quelhos por onde se arrastava, ouvia o som distante dos ensaios da rusga, na escola primária da Giesteira. Com olhos mortos de cansaço, ouvia os risos e o marchar. Finalizavam-se preparativos para as festas onde levariam o branco e azul claro do Bairro de Belém às ruas dos outros bairros. Bendita rusga, na qual não podia ir este ano. Fosse esse o seu mal maior!
Rondava a meia-noite no dia 28 de junho naquela cozinha. Os pés pareciam caminhar sobre vidro. Não poucas vezes olhou para a saída de emergência, sonhador, mas logo notava o seu patrão a controlá-lo. A cozinheira via nele um bom ajudante de cozinha, mas o patrão tratava-o como uma bomba-relógio, e, infelizmente, tinha o seu quê de razão. Júlio era tão difícil como a sua vida, e os outros faziam disso o que queriam.
Perante o fervilhar oleoso da milésima porção de batatas, sentiu a vibração do seu telemóvel. Não vendo o patrão perto, abriu a mensagem. Era do seu pai. Uma missiva curta, concisa e certamente bebida.
“Sai de casa.”
Trespassado, ficou algum tempo a procurar fazer sentido daquelas três cruéis palavras. O calor multiplicou-se, sufocando-o. Olhou em volta, sem associar significado a objetos ou pessoas. “Sai de casa.” “Sai de casa.” Quando voltou ao óleo, e dele retirou uma porção queimada, voou sobre outras planícies do pensamento, sentindo uma tão forte vontade de beber, de fugir, de recair no antigamente… foi o suficiente para, numa distração, se queimar.
Num espasmo, foi contra o ajudante de copa, que perdeu o equilíbrio dos pratos e os perdeu de encontro ao chão. Saltaram cacos de porcelana, e ecoaram gritos no alumínio; o stress levava a melhor a todos. Chegado o patrão, e percebido de quem era o acidente, este não perdeu a oportunidade para insultar Júlio, começando pela mãe. Comparava-o ao pai bêbado. Um inútil! Acusava-o de ter vindo bêbado trabalhar, e amaldiçoava a oportunidade que lhe tinha dado, um sem emenda, um delinquente.
Júlio pulsava. Pulsava. Pulsava! As marteladas no coração trucidavam-lhe a lucidez. Via tudo em tons de raiva… e a meio caminho do seu patrão, a ferver pacientemente, o óleo. Toda a cozinha congelou quando o viu caminhar de encontro ao patrão. O braço direito estendia-se para a rede das batatas queimadas. Era mesmo isso! O abusador sairia desfigurado num gesto apenas, uma infame fração de segundo. Longíssimo de ponderar consequências, estava a um só passo do patrão.
Até que, lá fora, por entre o chinfrim da Rua de António Graça, do povo ensardinhado por entre braseiros e mesas de cozinha com broa, vinho e minis, ouviu uma banda e uma canção. Alguém gritava. “É Belém! É Belém, vêm do Norte!”
Num silêncio tumular, a cozinha esperava-lhe a reação. O patrão olhava-o ainda desafiante. Júlio baixou a mão que arruinaria uma cara e duas vidas. Atirou o barrete para o chão, tirou o avental e deu um passo para a porta de emergência. Outro. E mais outro, já desenfreando uma correria. Desembocou na rua, indo ter com aos pares de Belém, através da criançada, da banda, dos pares adultos, do coro. Todos estavam cansados: eles por carregarem em braços os arcos iluminados do Belém, elas com os pés em suplício por usarem as chinelas da tricana… e Júlio gritou com toda a sua força, com toda a sua vida, com tudo de si.
“Vamos lá caralho! Vamos lá Belém! Somos os maiores! Viva Belém! Viva Belém!”
Naquele momento, todos perderam as dores. O sorriso das lindas tricaninhas, “mulheres do povo com pose de rainha”, regressou em pleno. Risos! Saiu a canção mais forte. Voltaram as forças e o orgulho, e a rusga branca e azul clarinha prosseguiu pelas ruas da Póvoa, para uma viagem que ainda desfilaria pelo branco e vermelho da Matriz, o verde e branco do Sul, cruzando-se com as rusgas do Norte, da Mariadeira e do Regufe, com centenas de almas a cantar na noite, antes de todas irem para suas respectivas fogueiras, com vinho, caldo verde, bifanas, sardinhas e amor.
Porém, Júlio não os acompanhou. Caminhou penitentemente até à casa que não o queria – atravessando quilómetros de música e festa, e foi-se deixar-se abater em casa, diante da porta aberta, esperando pelo regresso inevitável do pai e da companheira. As lágrimas desciam-lhe pelo corpo, prostrado perante tudo e todos, certo e sabido de que nunca conseguiria a guarda do irmão mais novo. Passou-se o tempo. Sem nono ano, sem família, amigos, sem rusga… só com um intenso cheiro a fritos e a certeza de ter perdido ainda mais um emprego, e de que, afinal de contas, o destino está mesmo traçado.
Mas eis que se liga uma luz. Ergueu os olhos, embriagado de sentimentos, e as lágrimas turvaram-lhe uma visão azul e branca. Limpou-as com o antebraço. Uma visão de chinelas, saia, meias, avental azul claro brilhante, revestido de brilho. Lenço transparente ao pescoço; puxo de rede no cabelo, e broche ao peito, de uma flor azulada reluzente. Sem maquilhagem: apenas uma face morena, majestosa, tão, tão elegante, de uma belíssima tricana poveira do seu bairro, que lhe ergueu a mão, sorrindo imensamente…
“Estamos à tua espera”, disse.
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