Olhares ambarinos

É para mim um acontecimento nobre quando um animal pousa a sua cabeça em algo suave, e me observa.

A gata do Tomé tem 12 anos. Fita-me do outro lado da sala, firme, com a tranquilidade característica de um felino. Já o meu infinitamente adorado cão, com a fisionomia de uma duna poveira, também se entretém perdendo o seu tempo comigo.

Há alturas, quando não me pede comida, mimo, rua, ou coçadelas atrás das orelhas, em que sei que o olhar do Jola é desinteressado. Olha-me, com a maior das simplicidades, o maior dos desinteresses, no mais puro dos gestos. A sua atenção está completamente em mim. Depois disso, o sono fecha-lhe as cortinas, e ei-lo a correr pelos campos dos sonhos.

Tremem-me os dedos ao teclado. Embrulho-me numa manta, bebo qualquer coisa quente, a recuperar o calor corporal. Hoje de manhã, quando me pus na rua para ir dar uma corrida, o frio surpreendeu-me, como se finalmente me apanhasse.

Gosto muito de correr pela Areosa, é divertido. Passo sempre por muita gente: idosos no seu giro, jovens a caminho do autocarro, visitantes do São João, entre tantos outros. Sob o viaduto, vejo um grupos de estudantes da faculdade de engenharia entretido numa praxe; mais à frente, cães em passeio com os donos, ou donos em passeio com os cães. Por vezes, pequenos momentos trazem à minha corrida um sorriso adicional, como quando aquelas crianças correram a meu lado, espada de brincar em riste, como que numa investida medieval. Ou como quando fiz a travessia sobre uma cama de folhas caídas, amarelíssimas, e o vento as empurrou na direcção da minha corrida. Por momentos, senti-me a levitar sobre o chão, como quem voa.

Dei por mim a regressar à realidade com um sorriso na cara, e prossegui com o meu dia, um tanto ou quanto surpreendido. Estranhamente, passou-se o mesmo num mergulho, quando a ondulação me empurrou com a água, e dei por mim a acompanhar o voo de uma cama de algas, pairando sobre a imensidão do areal. Em ambos os casos, dei por mim numa tontura feliz, de um bípede que é elevado a algo maior.

Agora aqueço os dedos com a minha respiração. Tremo novamente. O sistema nervoso lembra-se de algo antes de mim: o outono surgiu suave. A princípio, era apenas o sol da manhã descobrindo-se a seguir a uma esquina, como quem nos dá uma mão-cheia de quente.

Rua ante rua, a sua luz foi-se tranquilamente apegando a mim, e eu a ela, e ao seu jeito meio distraído. Encontrou-me e reconfortou-me, dando o seu alento à minha empreitada vã, e caminhámos conversando sob as cabeleiras das árvores, com a despreocupação dos dias. Depois, como que uma folha cedendo à gravidade, desprendeu-se de mim. O feixe de luz tapou-se atrás do cimento, e a minha corrida regressou ao frio.

Em meu redor, seguem as suas vidas os habitantes da Areosa, os estudantes da FEUP, os cardumes de faneca, os congros nos seus buracos, os peixes porco, todos os crustáceos, chocos e polvos. Um mar de olhares são disparados na minha direção — lateralmente, diagonalmente, de canto, de longe, de soslaio, ou simplesmente indiferentes.

Mas eu sinto que, por momentos breves, eu e o outono fomos embalados pelo mesmo movimento, como o das folhas amarelas e o das águas do fundo do mar, e o de tantos fenómenos naturais que nos elevam a experiência humana. Naquele momento, caiu sobre mim o interesse de um outro ser, e fui objecto do seu ternurento modo de olhar.

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