A caixa de ferramentas era uma novidade, mas para aquela ocasião justificava-se. Afinal de contas, eu ia levar coisas importantes para a escola. Os fios eléctricos, as lâmpadas, os motores e as pilhas não podiam ir aos tombos na mochila.
Lembro-me da sensação estranha de ter aquela caixa pesada junto aos pés; lembro-me do sentimento de orgulho do meu colega de carteira, o Hugo, quando afastei os cadernos e comecei a montar junto a ele um circuito eléctrico.
Já o fizera inúmeras vezes, o mais simples dos mais simples: ligar uma pilha a uma pequena lâmpada. Quando uni os terminais, encostando com o indicador o fio descarnado ao polo daquela 9V, ouviu-se o barulho de dezenas de cadeiras a arrastar. Em meu redor, toda uma turma estava de pé, espantada com a lâmpada que subitamente se acendeu.
Lembro-me, dias depois, de prender um pequeno disco com as cores primárias a um motor. Juntamente com o Cris, em jeito de improviso, lembrámo-nos de o prender à cadeira do professor para o assustar.
O plano era simples: o Cris escondia-se sob a carteira do prof, e assim que ele chegasse, eu fazia-lhe sinal, e ele zás! — clicava no interruptor, o circuito fechava, o motor girava o disco, e o disco assustava o nosso professor às oito e pouco da manhã. Perfeito! Montámos tudo, o Cris escondeu-se, e eu fiquei à espreita pelo prof.
O professor chegou, dei sinal ao Cris, clic! no interruptor, zzzzz no motor, e o disco colorido girou perante o professor. Digamos que o plano não correu como o esperado, o professor não se tinha assustado. Zzzzz…
Estudámos a expressão dele; também não parecia zangado… Limitava-se a observar aquele estranho mecanismo com uma expressão neutra. Quando finalmente falou, perguntou-nos como é que ligávamos o motor.
— É só carregar aqui, stôr — o Cris exemplificou.
— Muito bem, obrigado. Podem-se ir sentar.
O resto do pessoal olhava para nós. O que se tinha passado?
— Bom dia meninos. Dois a dois, quero que venham com o caderno de Estudo do Meio até à minha secretária.
Eu e o Cris olhámo-nos, sem entender.
O que se seguiu foi, para nossa surpresa, uma aula improvisada, com recurso ao motor e ao disco colorido que girava. A junção das cores primárias era, ora vejam… clic!… o branco. Todos viam o branco aparecer com o girar da roda.
Na minha turma, fiquei conhecido como o inventor. Não é de admirar que à pergunta “o que queres ser quando fores grande?” tenha respondido tantas vezes “electricista”, para espanto dos meus pais. O poder de iluminar e de trazer movimento a coisas inertes, era algo que me fascinava. E isso devia-o inteiramente ao meu tio.
— Não sabem nada! — ria-se ele.
O meu tio João — mais o seu eterno bigode — vivia com os meus avós. Aquela casa ainda hoje me transporta para um lugar de deslumbramento. À tradição dos pescadores poveiros, estende-se num comprido corredor, ladeado de quartos; após a sala, surge o quintal. Em tempos foi muito maior, hoje está mais humilde, mas sempre um imenso oásis de plantas, cuidadas por mãos conhecedoras sob o chilrear de canários.
O escritório do meu tio dava para esse quintal. Nele, um mundo de surpresas coexistia, fosse o computador, no qual o meu tio se entretinha a programar de forma autodidacta, ou as inúmeras gavetas e gavetinhas repletas de componentes electrónicos de todas as formas e feitios. De pesados ímanes, a uma multiplicidade estonteante de díodos, transístores, condensadores, resistências. Todas as semanas havia um circuito diferente montado numa placa de ensaio branca, referente às suas aulas. Sim, ele era professor — num lugar enigmático, que a minha impressionável mente infantil elevou a mito:
Laboratório de Electricidade
Escola Secundária D. Sancho I
Assim estava escrito a marcador atrás de um dos instrumentos mais impressionantes do meu tio: o seu multímetro. Media tensões, correntes, resistividade, media tudo, “só não tirava cafés”. Com aquilo que parecia uma caneta vermelha e outra preta, o multímetro estendia assim as suas mãos, através das do meu tio, aos terminais de qualquer componente eléctrico, e lia-lhe tudo o que havia a ler.
Não vou fingir que percebia grande coisa das explicações extremamente detalhadas que ele me dava do funcionamento das coisas. Ouvi-lo era, em si, um prazer; perceber que as coisas eram explicáveis, e que tudo tinha a sua razão de ser, era reconfortante.
Por outro lado, ver os bracinhos internos de um vídeo a puxarem a fita de uma cassete, encostando-a à sua cabeça prateada, era algo de avassalador. Ver com que complexidade se regiam pequenos circuitos digitais; ver os díodos de variadas cores a cantarem com luz. A elegância! A incomparável elegância da electricidade!
Depois, os jogos de computador até às tantas. Vê-lo a navegar pelos jogos era infinitamente mais divertido do que jogá-los. Vê-lo a rir-se com a minha Lara Croft a ser esmagada por um T-Rex inesperado; coisas do género faziam o dia dele.
Pistola de soldar, lupa com lanterna, maços de Marlboro, esferográficas sobre papéis amarelecidos pela humidade, aros de café em papéis do totoloto e jornais, diagramas e notas numa letra cuidada — o seu mundo era fascinante e misterioso.
Não funciona? Leva ao tio João que ele dá uma vista de olhos. Não acende? Vê com o tio João.
Não admira que os aparelhos se multiplicassem em seu redor, abertos para futura análise, como numa oficina automóvel. Ele ia-me pondo a par de tudo, com uma paciência infinita — uma paciência que, estranhamente, não transportava para as convenções sociais. Era resmungão, isolado. As suas histórias de antigamente — do tempo em que ensinara em Angola, dos seus acampamentos pelo Gerês, das suas idas à pesca — eram sempre assim, de antigamente; a sua vida era escola, casa, alguns amigos, e os sobrinhos, aos quais abria um mundo de carinho e atenção.
— Não há palha em casa?
Quando me falava dos alunos, recorria às fotografias da turma, com as caras tipo passe ali dispostas, e ia um a um, rindo-se ou contando histórias. Muitas vezes eles “não estudam nada, não sabem nada!”. Inúmeras vezes eles “eram muito bons”, estavam agora a trabalhar aqui ou ali. Um ou outro “ajudava o pai”, fosse na padaria da família, ou noutra vida que não a electrotecnia.
— Não sabem nada! — dizia ele a meu respeito, quando eu não sabia nada.
Eu tinha vergonha de dizer que não percebia as coisas, e deixava-me levar pelo relato. Como me compararia com os seus alunos? Não fazia ideia; eram homens, afinal de contas; o secundário estava a muitos anos de distância de mim.
Sem internet, entretínhamo-nos a programar e a descobrir coisas nos poucos softwares que tínhamos. Ensinou-me a programar. Fiz um programa com um botão de clicar que fugia do rato. O botão fugia um xis número de vezes, a dizer textos provocadores na sua face, até finalmente se deixar apanhar. Também criei o Winkid (Windows para kids…), que teve duas sequelas, o Winkid II e o Winkid III: eram programas recheados tudo o que eu conseguia fazer (menus e tudo!).
Após o 12º ano, entrei em Engenharia Electrotécnica e de Computadores, na FEUP. Não me dei bem no curso, devido à minha incapacidade de me aplicar ao estudo. O meu fascínio pela área e pela tecnologia levaram-me àquela imensa máquina cinzenta, mas uma vez lá, não conseguia conceber como ia finalizar o mestrado integrado. Entre os imensos corredores de cimento e vidro da FEUP andava perdido, quase só.
Sentia-me culpado por não estudar o necessário; culpado por reprovar a cadeiras, obstinado em tentar uma e outra vez. Os meus pais andavam tristes comigo pela primeira vez, vendo as minhas tentativas ocas. Ao passo que o filme que andava a construir ganhava forma, o curso desmoronava-se em meu redor.
— Porque é que não pedes ajuda ao tio João? — dizia-me o meu primo Francisco, então colega de curso — ele ajuda-te em Circuitos.
Algo me impedia de pedir-lhe ajuda, que eu não sabia descrever então. Era simples: eu não queria revelar a minha profunda ignorância de circuitos ao meu tio. Não lhe queria falhar dessa maneira; falhar-lhe-ia através dos anos, até às nossas madrugadas de descoberta. Se era para eu ser engenheiro, sê-lo-ia sem ele saber das aulas a que faltava, dos exames a que reprovava, das cadeiras que repetia.
— Não sabem nada! Não estudam nada! — diria ele, rindo-se. Depois, sem falha, explicar-me-ia tudo, tintim por tintim. De certeza que o faria. Sei disso. Mas eu teria vergonha de o interromper com alguma dúvida básica, e ainda maior vergonha de o esconder dele. Não queria ser um dos seus maus alunos.
— Leva ao tio João, que ele arranja.
Não lhe levei o meu curso. Não se arranjou.
Os anos passaram e o tio João passou a ter menos contacto comigo. Apesar de o visitar juntamente com os meus avós, o meu fascínio e atenção foram viajando para outras áreas, e as minhas coisas começaram a toldar-me os olhos. Estar ali era estar pouco; era pensar noutras vidas, noutras coisas. Estar no momento, como estivera tanto tempo em miúdo, era agora uma raridade.
No outro dia tive uma crise. Comecei a chorar inconsolavelmente, como não o fazia há anos, a respeito de coisas que até então não processara. Um turbilhão de coisas assaltou-me os olhos. Pensei nos LEDs do meu tio, os seus circuitos integrados, nas riscas coloridas das suas resistências. Pensei em como, quando falamos com as pessoas regularmente, isso nos traz uma falsa sensação de segurança, como se elas nunca desaparecessem.
Levantei-me da cama, num pranto, e fui lavar a cara, ciente de que este momento me dizia coisas — coisas importantes.
O meu tio ansiava pela reforma, de uma maneira que a nós nos era quase engraçada. Estava farto daquilo, dizia que já não queria saber da escola, estava tudo mudado, já não percebia nada. Contou os anos, depois os meses, depois os dias até à sua reforma. Não ter de ir dar aulas foi um peso enorme que lhe saiu de cima dos ombros, e o corpo que já se enfraquecera com um enfarte e anos a fumar continuamente, relaxou um pouco.
Os cuidados do meu avô, que eventualmente faleceu, e a preocupação para com a minha avó, deixaram-no sempre no seu canto. A verdade é que a sua tendência para se isolar o levava a demonstrar coisas só pontualmente. Num dia ou noutro, surgia uma conta que não percebia. Uma questão no computador, uma teimosia estranha. Coisas da internet, com as quais eu ajudava. Mandava-me e-mails a pedir ajuda, e eu lá ia aparecendo.
— Não sabem nada! — diria ele.
Fui-me apercebendo da sua dificuldade em compreender algumas coisas, que muitas vezes era disfarçada com a sua teimosia, ou falta de paciência. Demorei a perceber que a teimosia era incompreensão. Medo de não perceber?
Vergonha de pedir ajuda?
Não parecia ser a mesma pessoa que programara, de raiz, um jogo da forca com provérbios portugueses.
— O tio João não está bem — dizia eu aos meus pais — alguma coisa se passa com ele.
Tal tornou-se mais evidente nos tempos de Covid-19. Explicar-lhe a importância dos cuidados e da vacina era um desafio. A sua atenção, o seu cuidado, o seu dia-a-dia, eram inteiramente dedicados ao Teco, um gato de três patas que se tornou a sua vida. Alimentar o gato, rir com o gato, dar festas ao gato.
Ainda que contrariado, sempre, em última análise, confiou no que lhe pedíamos. A minha mãe levou-o a consultas de neurologia, algo que lhe transcendeu completamente, e quando o resultado chegou, já não restavam dúvidas.
Li e reli as folhas, onde o meu pai sublinhara as palavras-chave. Em suma, disse-me, o tio não estava bem. Perdera capacidades, e a intervenção estava fora de hipótese. Por maior que fosse a sua capacidade de pôr as coisas a funcionar — “leva ao tio João, que ele arranja” — havia um circuito eléctrico ao qual ele não conseguia chegar.
— Não sabem nada! Não estudam nada.
Naquela noite, só acalmei depois de comer algo doce, e de, calmamente, lavar a louça com água quente. Sei porque chorei. Chorei por me aperceber de que uma parte do meu tio se tinha desligado, e eu, no meio das minhas merdas, não tinha dado conta. E assim, não tinha chorado a sua perda.
Pelos vivos, não se chora. “Viúva de um vivo”, ouvi dizer numa peça de teatro. Tremi com o desfasamento das pessoas. Como dizem os editores de vídeo, com os fade-outs.
— O fim do mundo! — dizia o meu tio, a respeito de alguma coisa complexa — É uma trabalheira… — e lá punha mãos à obra.
Percebi que, tal como o meu querido avô, o meu tio desvanecia-se diante de nós, num desfasamento constante, cruel, inexorável. Apesar do seu lado afectivo estar todo lá — e como está! — de nos receber com um sorriso sob o bigode já cinzento, e ainda brincar com as minhas priminhas como se fosse connosco — a sua compreensão perdeu-se, as histórias que conta repetem-se e confundem-se.
As luzes desligam-se aos poucos. Os componentes guardam-se metodicamente, dentro das suas gavetinhas, para não mais serem usados. Apesar de tudo, o seu amor está connosco. Esse não oxida. Não enferruja. A humidade não o consome. O tabaco não o amarelece.
— Este era bom aluno! Muito bom aluno.
Voltam-me as lágrimas. Se com isto, tirei alguma lição, é a de que não vou deixar que o meu dia-a-dia (sempre tão irrisório, tão fútil, tão parvo!) me distraia novamente. O ano está quase a mudar. Oxalá não mude tarde para mim. Que eu possa, mais uma vez, aprender algo com o meu tio.
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